O fim dos veículos a combustão como principal meio de transporte não é mais questão de “se”, mas de “quando”. Com o mundo mais ou menos certo de que o ano 2050 marcará o momento em que as emissões de carbono serão praticamente zeradas, é questão de tempo para que o barulho do trânsito ou as paisagens cobertas de fuligem sejam meras lembranças às próximas gerações.
Mas converter todas as atividades humanas, obviamente, é um processo custoso e que não estará livre de traumas. Ainda que as vendas de carros elétricos estejam crescendo vertiginosamente, certos problemas virão junto com o maior volume desses veículos nas ruas.
Do descarte de baterias à dependência de recursos finitos e localizados, estudiosos e membros da indústria já apontam problemas que, enquanto não têm solução definida, seguem simplesmente postergados.
De olho em questões como essa, há quem acredite que, por mais que carros elétricos tendam a dominar o futuro, a diversificação é uma boa pedida. A Toyota é uma das que pensa assim, e não economiza engenhosidade em busca de soluções alternativas.
Uma das mais empolgantes empreitadas da japonesa é o uso do hidrogênio, que vem sendo feito de duas maneiras principalmente. Uma delas é menos “futurista”, consistindo em adaptar motores convencionais à queima do gás H2; uma forma de manter vivo o aspecto afetivo de carros do nosso tempo, candidatos ao posto de “disco de vinil” (souvenires caros e que têm seu charme no passado) da indústria automotiva daqui a algum tempo.
O outro, muito mais complexo, está concentrado no Toyota Mirai: o primeiro carro de série do mundo movido a uma célula de hidrogênio. O sedã fabricado no Japão não apenas está no Brasil, como foi dirigido por QUATRO RODAS, que também entendeu melhor o motivo de sua vinda ao país.
Bom demais para ser verdade?
A unidade trazida ao Brasil vem sendo abastecida de maneira improvisada pela Toyota e uma fornecedora parceira, uma vez que a mera instalação de um posto de H2 custaria à marca cerca de R$ 600.000. Isso ocorre devido à imensa pressão na qual o gás é armazenado em três cilindros instalados no chassi— protegidos por tecnologia análoga à de foguetes espaciais a fim de garantir plena segurança em caso de batidas.
Como o hidrogênio é o elemento com menor massa molar do Universo, ele também é extremamente leve: cerca de 5,6 kg de gás são suficientes para mais de 643 km de alcance sem “pé leve” a bordo do Mirai.
O H2 que sai dos cilindros passa pela protagonista da tecnologia, a célula de combustível a hidrogênio, que utiliza o elemento para gerar corrente elétrica. A grade frontal serve para coletar o oxigênio que se junta aos átomos de hidrogênio e formam água: único produto que sai do escapamento do carro.
A corrente gerada alimenta um motor elétrico traseiro, de 182 cv e 30,6 kgfm. Ou seja, o Mirai é um carro elétrico (do tipo FCEV) com torque instantâneo, rodar silencioso e tudo mais de positivo que a mecânica elétrica oferece. Também há frenagem regenerativa, que alimenta uma bateria minúscula de 1,2 kWh que serve como um “tampão” para eventuais variações na corrente gerada pela célula.
A maior diferença em relação a um elétrico convencional (os BEV) está no fio d’água que escorre periodicamente do assoalho.
Não é à toa que o carro a hidrogênio (em seus diferentes tipos) atrai tanta paixão. Um BEV com alcance de 550 km, o Tesla Model S Plaid, tem 85 kWh de bateria, totalizando 540 kg só de células. Piorando tudo, a conta não é linear: dado o peso extra, um veículo com 640 km de alcance, por exemplo, tem em média 3 toneladas de peso total.
Além do desgaste mecânico gerado, muitas vezes o consumo energético devido ao peso extra simplesmente anula os ganhos de autonomia, ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente o preço do carro e o tempo de carregamento. O último item, inclusive, é outro ponto forte do Toyota, que, em postos adequados, é abastecido tão rápido quanto um carro a gasolina. Disponível em países da Europa, Japão e na Califórnia (EUA), o Mirai é sempre lançado junto a uma rede mínima de postos de hidrogênio.
Nos EUA, por exemplo, há subsídios que permitem ao modelo básico custar cerca de US$ 43.000, e os compradores ainda levaM US$ 15.000 de crédito para abastecer — como o quilo do hidrogênio custa cerca de US$ 13, isso é suficiente para encher os cilindros cerca de 230 vezes.
Sempre tem um “mas”
No caso dos BEVs, a maioria dos problemas não está na geração de eletricidade em si (algo dominado pelos humanos há séculos), mas principalmente no veículo em si. Nos FCEVs é ao contrário e, mesmo sendo o elemento mais abundante do Universo, dominar o hidrogênio ainda é um percalço.
Hoje em dia, os pontos de abastecimento do Mirai utilizam hidrogênio produzido em usinas grandes e transportados por caminhões ou produzido em pequenas usinas no próprio posto. O armazenamento do gás é feito ou comprimindo-o a pressões que superam a pressão atmosférica em 700 vezes ou resfriando-o a -253º C; dois processos que consomem uma enorme quantidade energia.
O método ideal de produção do H2, a eletrólise, também é muito “gastão”, e é aí que o Brasil começa a se destacar. O cada vez mais falado “hidrogênio verde” corresponde ao combustível gerado por fontes renováveis de energia, e as fontes hidroelétricas, eólicas e solares (potenciais ou já instaladas) fazem do país um potencial líder na geração dele. E a Toyota está de olho nisso.
A montadora acredita que o futuro dos transportes será baseado na coexistência de diferentes tecnologias, e o hidrogênio está entre elas. Os japoneses também sabem que aspectos socioeconômicos e geográficos devem ser levados em conta, e tanto o poder aquisitivo de país emergente quanto as dimensões continentais são aspectos que tornam o uso do hidrogênio mais desafiador ao Brasil — ao mesmo tempo que forçam os cientistas a trabalhar dobrado.
Avaliação da Toyota sobre o estado de diferentes tecnologias no Brasil
TECNOLOGIA | INFRAESTRUTURA | PREÇO |
Híbrido flex | Pronta | Médio |
Híbridos plug-in | Acessível | Médio/Alto |
Baterias | Insuficiente | Alto |
Hidrogênio | Inexistente | Muito alto |
Outro aspecto importante é a oferta inigualável de etanol, que sempre tem baixas emissões de carbono. O álcool etílico pode ser utilizado para produzir hidrogênio através da reforma a vapor, um processo físico-químico que vem sendo estudado também pela Nissan para ser gerado dentro do próprio veículo.
No caso da Toyota, por outro lado, já há conversas para testar o Mirai em uma estação de reforma a vapor externa, o que diluiria bastante os custos de instalação do posto e tiraria dos engenheiros o fardo de fazer o mecanismo caber dentro de um automóvel.
Mas isso é apenas o começo e, enquanto o único Mirai do Brasil se “sacrifica” em nome da ciência, o lado dos consumidores é estudado nos mercados onde ele é vendido. Ao mesmo tempo, a montadora se junta à Volkswagen na aposta dos híbridos a etanol, enquanto também investe em tecnologias como a dos híbridos leves para que a eletrificação, em diferentes graus, possa chegar a pessoas com menor poder aquisitivo.
Com a sinceridade típica dos orientais, a Toyota admite que o desafio é gigantesco, e as diferentes abordagens das montadoras frente à eletrificação mostra que ninguém tem certeza do caminho menos penoso. A frase do CEO do Toyota Research Institute, Gill Pratt, entretanto, é exibida quase que como um lema aos jornalistas brasileiros: “a solução perante a incerteza é a diversidade”.