Os truques das montadoras para ter carros mais baratos de produzir
Para reduzir os custos de desenvolvimento e produção de um automóvel, as montadoras adotam práticas que muitas vezes passam despercebidas pelo consumidor
Reduzir, reutilizar e reciclar. Os três “R” da sustentabilidade prevêem uma melhor interação entre o homem e o meio ambiente, mas estas filosofias também ajudam a indústria automotiva a criar carros mais baratos – de se fabricar, não necessariamente de comprar.
O design é importante, mas o grande desafio no desenvolvimento de um carro está em atender a todas as expectativas e demandas da forma mais barata possível.
Isso envolve desde um novo componente que necessitará de um grande investimento – seja do fabricante ou de seu fornecedor – para ser desenvolvido até a espessura da manta acústica que será usada sob o capô. Ou se o carro terá uma manta ali.
“Tudo vale a pena se a escala de produção não é pequena” diria Fernando Pessoa, caso fosse engenheiro de produção.
Um carro feio é mais barato?
Não necessariamente. Na verdade, não há nada que impeça um carro barato de ser bonito. As linhas de um farol ou de um para-choque não aumentam obrigatoriamente seu custo, mas sim seu tamanho, o número de componentes necessários e a estrutura.
De acordo com Luiz Alberto Veiga, ex-designer da Volkswagen, são as soluções empregadas no carro que aumentam seu custo de produção.
Um ótimo exemplo está nas portas. Volkswagen Gol, Fiat Palio e o próprio Etios têm vidros com uma curva no canto superior mais próximo da coluna B.
Isso indica que suas portas são compostas por uma chapa externa e outra interna, permitindo o uso de uma guarnição de borracha extrudada.
O segundo tipo, mais caro, é de portas compostas pelas chapas interna e externa e por um frame soldado que resulta em um canto vivo na mesma região: é mais caro de ser produzido e as borrachas utilizadas na vedação precisarão ser injetadas, que também são mais caras.
É o que se encontra em Hyundai HB20 e Ford Fiesta, por exemplo.
Também é possível reduzir o número de componentes. Usar apenas um limpador de para-brisa (como no Etios e no Renault Kwid) não elimina apenas o custo de um braço e um limpador, mas também diminui o mecanismo do motor, elimina um furo na carroceria a ser vedado e diminui o tempo de produção em alguns segundos.
Ter apenas um amortecedor no porta-malas e um único barbante para sustentar o tampão vai no mesmo sentido. Curioso é ver a tampa de vidro do Mobi sustentada por dois amortecedores enquanto o tampão tem apenas um barbante.
A presença de apenas uma luz de ré (algo permitido pela lei) também entra nessa conta, inclusive em carros não necessariamente baratos ou populares, como os Chevrolet S10 e Cruze hatch, e o Golf da geração 4,5.
Compartilhamento de custos
Para reduzir gastos, a melhor saída é evitar o custo de desenvolvimento. Um carro tem de 3.000 a 5.000 componentes. Cada um deles precisa passar por inúmeros testes de validação.
Se for um componente eletrônico, ainda passará por homologação junto a órgãos fiscalizadores – que podem se repetir em cada mercado onde o carro será vendido. É muito dinheiro e tempo (que também é dinheiro) envolvido.
A tarefa fica bem mais fácil caso haja uma peça com a mesma função em um outro carro que já seja vendido pela empresa, seja naquele mercado ou em qualquer outro lugar do mundo.
É por isso que quase todo Fiat tem os mesmos botões para controlar o computador de bordo, ou porque o Uno e o Mobi usam saídas de ar de Doblò. Isso também explica o fato do Peugeot Hoggar usar as mesmas lanternas do 1007, monovolume que só foi vendido na Europa, e a Fiorino ter as mesmas lanternas da Doblò.
As lanternas da primeira Chevrolet Montana tinham o mesmo formato das lanternas do Corsa Pick-up, mesmo sendo carros completamente diferentes.
O antigo Ford Ka europeu (que usava plataforma do Fiat 500) tinha o mesmo quadro de instrumentos do Palio brasileiro. Mas ninguém supera o primeiro Logan: o mesmo retrovisor poderia ser usado dos dois lados do carro.
Também pode ser que a solução esteja do outro lado do muro da fábrica. A empresa pode encomendar o componente a um fornecedor. Este receberá uma lista de especificações que a nova peça deverá atender e, com sorte, encontrará uma semelhante ou idêntica que já seja fornecida para outro fabricante. Isso explica alguns casos de carros aleatórios que compartilham peças.
O componente em questão pode ser desde uma presilha plástica até uma transmissão completa. Ford e General Motors já dividiram o custo de desenvolvimento de transmissões algumas vezes (Fusion e Captiva já usaram o mesmo câmbio automático de seis marchas).
Fiat, Land Rover, Peugeot, Citroën e Mini compram câmbio automático de seis marchas da Aisin (que pertence à Toyota). O C4 Lounge usa o mesmo AWTF-80 SC do BMW i8 e a transmissão automática ZF da Amarok é praticamente a mesma dos Rolls-Royce!
Isso tudo pode ficar ainda mais fácil se você compartilhar uma plataforma, seja ela modular ou não. A economia não estará apenas nos componentes compartilhados, mas também no fato dos carros seguirem um mesmo princípio de montagem, terem planta elétrica semelhante e powertrain compatível.
É como um conjunto de peças de Lego: você tem várias peças semelhantes que podem fazer coisas completamente diferentes.
Quando se trata de sistemas de segurança, o fabricante o pode dividir o custo do desenvolvimento com seu fornecedor, que pode ser a TRW ou a Bosch, por exemplo.
O contrato envolve um período de exclusividade. É por isso que depois de alguns anos algo que é exclusivo de um fabricante começa a aparecer em outras marcas, em carros dos mais variados segmentos. Alerta de colisão, de mudança de faixa e de pontos cegos são bons exemplos.
Reutilizar para gastar menos
As últimas reestilizações do Fiat Doblò e do Chevrolet Classic são bom exemplo de reúso.
Quando o Fiat Doblò ganhou uma nova geração na Europa, em 2010, os carros fabricados no Brasil receberam a reestilização que fora estreada na Europa em 2005. O Classic herdou o design do Sail vendido na China desde 2007, e que havia saído de linha em 2010, quando estreou por aqui.
A propósito, a plataforma 4200 do velho Corsa e o Classic foi reutilizada para dar origem ao Agile e à atual Montana. E quando a antiga Ford Ranger passou por sua última reestilização, em 2010, não mudaram a caçamba da versão cabine simples: reaproveitaram a que era usada desde 1996 com enormes plásticos escondendo um vinco que não casava com a cabine.
O Toyota Etios também tem outro exemplo para dar. O câmbio automático de quatro marchas que estreou em 2016 – e hoje está em mais da metade dos Etios vendidos – é o mesmo que o Corolla utilizou na geração anterior, que deixou de ser produzida em 2013.
Tudo bem: em 2011 o Renault Duster não só ressuscitou o motor 2.0 do Mégane (morto em 2010) como o fez virar flex e ainda reaproveitou seu câmbio de quatro marchas.
Reciclar para não desperdiçar
Claro que o fabricante de automóveis evita o desperdício de material. Os cortes nas chapas de aço que vão para as prensas são calculados para que haja um mínimo de sobra, e o que sobra volta a ser derretido.
Isso também vale para as peças de metal usinadas e para as partes defeituosas. Até o vidro que se quebra ganha uma nova chance.
Plásticos provenientes de reciclagem, fibras e óleos naturais também já são utilizados em peças de acabamento, substituindo materiais sintéticos com produção mais poluente ou cara.
É difícil mensurar o impacto financeiro total de utilizar estes truques, e se o carro que nasce de tudo isso é, realmente, o que queremos pagar. Mas é fato que elas reduzem substancialmente o custo de produção dos carros. E isso vale para qualquer fabricante.
Impossível é saber o quanto desta economia é repassada ao preço final de cada carrro.