Naquele dia não amanheceu tão frio quanto nos anteriores. Fazia -6 oC fora da salinha do hotel, em Seefeld, uma pequena vila no Tirol, na Áustria, bem na fronteira com a Alemanha. A região é um centro de esportes de inverno e era por isso que passaríamos os próximos dois dias ali.
Enquanto nosso instrutor, o holandês Nik Kunst, apresentava os exercícios iniciais de pilotagem que faríamos no gelo, a primeira anotação que escrevi no meu bloquinho resume o drama : “O que pode ser aproveitado no asfalto?”. O que veio a seguir me provou que alguns aprendizados no gelo podem ser úteis no asfalto quente do Brasil.
Nem vi a estação de esqui. Fazia tempo que não nevava, mas a temperatura mantinha a grossa camada de gelo sobre um pasto enorme, alisado por tratores diariamente. É tradição: no inverno, os rebanhos dão lugar aos carros usados no Audi Ice Experience. Seefeld é um dos diferentes endereços (talvez, o mais bonito) dos cursos de pilotagem que a Audi oferece aos clientes anualmente.
O objetivo das primeiras atividades seria, basicamente, ter precisão suficiente para domar não apenas o RS 5 Sportback, com seu viciante V6 2.9 de 450 cv, mas também o RS e-tron GT, elétrico mais potente da marca com dois motores que somam 598 cv – desta vez não daria para usar o modo arrancada, que libera 646 cv. Nos dois, há sempre muita potência chegando nas quatro rodas por meio de sistemas de tração integral completamente diferentes.
A única preparação nos carros era o uso de pneus de inverno, com cravos metálicos que melhoram um pouco a aderência. Mesmo assim, tem que pegar leve: se acelerar com tudo, os pneus viram uma fábrica de raspadinha de gelo, sem sair do lugar.
Nas frenagens, o segredo é ter fé: as rodas travam, os controles eletrônicos atuam para manter a direção e os cravos metálicos ancoram o carro no gelo. Por mais pesado que um RS e-tron GT seja ( 2.397 kg), ele vai parar. Cada carro tem uma reação.
Se não pegasse confiança, ficaria difícil avançar para a frenagem com um desvio no final. O aprendizado aqui é ser gentil com o volante, virando apenas o suficiente para desviar dos cones sem perder o controle do carro. Os cones passaram ilesos.
Mas, antes, uma pausa: porque escorreguei na água derretida pelo motor dos carros tentando chegar à cabana (quentinha) do café. Bati a cabeça e o cotovelo esquerdo. O braço ficou fraco e dolorido. Pelo menos eu já estava no gelo, mas teria dificuldade justamente quando o movimento da direção é importante.
Escorregões controlados
De volta à pista de gelo, agora com travas metálicas em uma das botas (o par ajudou um colega), a missão é completar uma curva de 180o escorregando. Depois, completar 360o.
A regra é desligar os controles de tração e estabilidade, chegar a 30 km/h, virar o volante rápido para o carro perder a traseira e fazer o contraesterço sem se esquecer do acelerador – as rodas traseiras precisam continuar sem aderência. Está aí o segredo para prolongar o drift.
Nik coordena no rádio, avisando quando estávamos exagerando ou virando pouco o volante. Também insiste na instrução mais valiosa, digna de um coach: “Você precisa olhar para onde você quer ir”. Isso é importante no asfalto, mas quando você está com um carro esportivo de lado e escorregando no gelo, é isso que vai garantir o sucesso na manobra, pois faz seu cérebro coordenar o contraesterço e o acelerador. Se o instinto agir, você vai continuar olhando para a frente do carro e rodar.
Para terminar o primeiro dia, slalom – o exercício de desviar de uma sequência de cones deixando a traseira escapar, mas com giro de 180o no meio. O segredo para mudar a direção é um toque no freio no contraesterço, porque a frenagem é mais forte nas rodas da frente, fazendo a traseira mudar a direção.
Todos os exercícios são mais fáceis no RS 5, que tem reações telepáticas por conta da distribuição mecânica do torque entre os eixos. No e-tron, além do peso, a entrega de potência controlada pela eletrônica não é previsível. É preciso virar mais e acelerar mais para vencer a aderência extra proporcionada pelo seu peso. Não contei para o Nik, mas só acertei com o RS e-tron GT no modo Sport, em vez do modo Comfort, indicado por ele.
Mantive o segredo no segundo dia, dominado por analgésicos e exercícios mais longos. Para aquecer, um slalom, com mais tempo escorregando antes de mudar a direção. O trabalho já havia se transformado em diversão, coroada pelo exercício seguinte: emendar duas voltas fazendo um 8 sem cruzar as pistas. Eu já estava brincando com a velocidade do carro de lado e com a quantidade de gelo que jorrava para fora da pista. O circuito longo, que exigiu uma aplicação mais técnica de todas as lições, marcou o fim do treinamento.
A vantagem do gelo é permitir perder a traseira quase em câmera lenta e sem queimar os pneus, aprimorando a técnica do drift. Esta seria a forma mais segura de aprender e, talvez, a mais barata: para os clientes da Audi, o curso custa 2.500 euros, já com hospedagem e alimentação. A melhor dica é ter travas nas botas, porque semanas depois descobri que fraturei o osso rádio na queda.