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Gasolina sintética: ela pode ser a salvação dos motores a combustão?

Fomos até o Chile para conhecer a primeira usina de produção de combustíveis sintéticos, que são neutros em C02 e podem manter os motores a combustão vivos

Por Paulo Campo Grande, de Magallanes (Chile)
Atualizado em 5 abr 2023, 14h37 - Publicado em 28 mar 2023, 17h18
E-FUEL Porsche
 (Divulgação/Porsche)
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Até agora, combustível sintético ou e-fuel era coisa de cientista. Mas, com a inauguração da primeira usina produtora de gasolina sintética, em dezembro passado, no Chile, esse tipo de combustível passou a ser do interesse das pessoas comuns, principalmente donos de carros a combustão. Isso porque combustíveis sintéticos são considerados neutros nas emissões de CO2 e, portanto, uma tábua de salvação para esse tipo de veículo, diante do tsunami da eletrificação.

A vantagem dos combustíveis sintéticos é que o CO2 utilizado em sua produção é retirado da atmosfera, enquanto o dos combustíveis fósseis é extraído do petróleo. Ou seja, o CO2 resultante da queima do e-fuel é um gás que já estava na atmosfera e, portanto, não contribui para o aumento das emissões. Enquanto o CO2 derivado do combustível fóssil se soma ao já existente. O CO2 é considerado o grande vilão do aquecimento global.

E-FUEL Porsche
A turbina eólica é o que mais chama atenção em meio à instalação, que, em certos momentos, parece uma petroquímica (Divulgação/Porsche)

A usina chilena de Haru Oni foi construída por um consórcio de empresas de tecnologia e energia, lideradas pela HIF (Highly Innovative Fuels), que tem como sócias a alemã Porsche, a americana Baker Hughes e a chilena AME. Ela ainda opera de modo experimental, mas já tem data para produzir em escala e, em breve, terá a companhia de outras usinas que estão em construção.

Segundo a HIF, o volume de produção de Haru Oni, na fase piloto, é de 130.000 litros/ano, mas deve chegar a 55 milhões de litros/ano em dois anos, e atingir 550 milhões de litros até o final da década, após a ampliação das instalações. Esse volume é o mesmo previsto para outras duas plantas do grupo: Matagorda, no Texas (EUA), e Tasmânia (Austrália), que devem começar a operar em 2024.

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)
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Os sócios acreditam que, no futuro, os combustíveis sintéticos poderão suprir a necessidade de toda a frota mundial de automóveis a combustão, atualmente estimada em 1,3 bilhão de veículos, e ainda atender as demandas da aviação e da navegação marítima.

A localização dessas usinas foi escolhida de forma estratégica. Além do aspecto comercial (Matagorda atende o mercado norte-americano; Haru Oni, o europeu; e Tasmânia, da Ásia), um dos critérios foi haver oferta de energia limpa e renovável: eólica ou solar.

No caso de Haru Oni, segundo a Porsche, o sul do Chile oferece cerca de 270 dias/ano de vento forte, o que possibilita que as turbinas eólicas funcionem a plena carga. Isso é cerca de quatro vezes mais horas de funcionamento a plena carga do que qualquer outro lugar no território da Alemanha, conforme os especialistas. Não por acaso, a usina chilena foi batizada de Haru Oni, que significa Ventos Fortes, na língua dos índios que habitavam a região, os tehuelches (ou patagones).

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)

A convite da Porsche, nós visitamos Haru Oni e depois dirigimos um Porsche Panamera Turbo S abastecido com e-gasolina. O test-drive durou cerca de 250 km, entre a usina, que fica próxima à cidade de Punta Arenas e Puerto Natales, na região de Magallanes y Antártica Chilena.

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Como era de se esperar, já que a gasolina sintética apresenta essencialmente a mesma formulação da gasolina comum, não notamos nada de diferente no carro, nem mesmo o ronco do V8 de 630 cv. Na estrada foi possível explorar até mesmo o modo Sport Response, apertando uma tecla no volante, quando o carro responde com força máxima, durante 20 segundos, para permitir, por exemplo, uma ultrapassagem rápida.

Nesse momento, como de costume, o sedã arrancou deixando o motorista com as costas coladas no banco – para saber mais sobre o test-drive, que continuou no dia seguinte e foi uma prova de resistência para o carro.

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)

Segundo os engenheiros da Porsche, outra vantagem dos e-fuels é que eles dispensam quaisquer adaptações nos veículos, bem como nos dispositivos usados no armazenamento, no transporte e na venda dos combustíveis.

Em relação ao custo, eles estimam que 1 litro de e-gasolina hoje custaria em torno de dois dólares, cerca do dobro do preço do litro da gasolina comum no Brasil e nos Estados Unidos (US$ 1,011 e US$ 0,984), mas próximo aos valores cobrados no Chile e na Alemanha (US$ 1,595 e US$ 1,879), sempre respectivamente, segundo o site Global Petrol Prices.

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De acordo com o gerente de combustíveis sintéticos da Porsche, Marcos Marques, o e-fuel também pode ser misturado ao combustível fóssil, como alternativa para diminuir as emissões de CO2, diluindo assim os custos do combustível. Mas a produção inicial de Haru Oni não será vendida porque a Porsche deve usar esse combustível em competições esportivas.

No último sábado (25) Alemanha e União Europeia firmaram um acordo que permite que carros movidos a e-fuel sejam vendidos após 2035. Na Europa, a lei assinada pela União proibiria a venda e registro de qualquer novo veículo a combustão interna, permitindo apenas os elétricos a bateria e os que usam células de combustível. Porém, graças ao governo alemão, a proibição se tornou menos restritiva, possibilitando o registro de veículos que utilizam combustíveis sintéticos.

Aprofundando a questão ambiental, não existe solução perfeita. O ar do planeta é o mesmo para todos, mas, considerando os locais de instalação das usinas, com oferta de vento e sol, e os mercados consumidores, o CO2 será capturado em lugares preservados e pouco habitados e consumido em cidades poluídas e de alta densidade populacional. E até as aparentemente inofensivas pás eólicas são acusadas de alterar as correntes de vento, atrapalhando os voos dos pássaros e a polinização das plantas.

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)
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Puerto Natales é a capital da província chamada Última Esperanza. Ela tem esse nome em homenagem ao espanhol Juan Ladrillero, navegador que, em 1557, tentou fazer a travessia do Pacífico ao Atlântico (sentido contrário ao caminho descoberto pelo português Fernão de Magalhães 37 anos antes) e se perdeu naquela região. Ler “Última Esperanza” nas placas da estrada agora pareceu uma premonição em relação aos motores a combustão.

Como a mágica acontece

ilustração embraer
(E-Fuel Alliance/Reprodução)

Haru Oni tem seis estações: as três primeiras cuidam dos ingredientes necessários e as três últimas, do processamento. Os ingredientes são gás carbônico (CO2), água (H2O) e eletricidade (para realizar a eletrólise).

O CO2 é captado por uma estação que aspira o ar da atmosfera e, por meio de pressurizadores, condensadores e filtros, separa o CO2 dos demais componentes. O oxigênio devolvido à atmosfera e o gás carbônico armazenado no estado líquido. A água é fornecida pela companhia de águas de Punta Arenas e também por um poço artesiano (mas também pode ser água do mar dessalinizada).

E-FUEL Porsche
Na fase piloto, a usina de Haru Oni vai produzir 130.000 litros/ano, que serão utilizados pela Porsche em competições (Divulgação/Porsche)
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A eletricidade é obtida por meio de um gerador eólico com pás de 132 metros e capacidade de 3.465 MW.

A energia elétrica produzida é usada na eletrólise da água para se obter o hidrogênio (o oxigênio é liberado na atmosfera), na primeira das três estações de processamento – um galpão ocupado por um grande eletrolisador, onde a àgua entra em um grupo de células e é submetida a corrente elétrica. Segundo o gerente de operações da usina, Marcelo Daller, esse processo consome cerca de 1.200 MW (30% da capacidade gerada pela turbina eólica).

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)

Aos olhos de um leigo, a próxima estação parece um amontoado de tubos entrelaçados e reservatórios. Mas é aí que os átomos de carbono se juntam aos de hidrogênio para formarem moléculas de combustível. Depois de ouvir a explicação do gerente da usina, a função de cada componente do labirinto fica um pouco mais clara.

Segundo ele, nesse estágio da produção se obtém metanol, ou, mais precisamente, metanol cru, assim chamado porque esse combustível contém água em sua formulação. “Este é o primeiro passo para a produção do e-fuel. Com a ajuda de um compressor, nós alimentamos um reator (com o CO2 e o H sob alta pressão, no estado gasoso) que tem em seu interior um catalisador que permite sintetizar metanol (sob baixa pressão o composto assume o estado liquido).” O catalisador é o componente que define o tipo de combustível que será sintetizado. Ele pode conter ferro, cobalto, mas sua composição é patenteada e mantida em segredo pelo fabricante como se fosse a fórmula da Coca-Cola.

E-FUEL Porsche
(Divulgação/Porsche)

O método para se produzir combustíveis sintéticos como gasolina, querosene e diesel é conhecido desde os anos 1920, quando o alemão Franz Fischer (1877-1947) e o tchecoslovaco Hans Tropsch (1889-1935) patentearam a descoberta. A receita original passou por ajustes e hoje o termo Fischer-Tropsch se aplica a diversos processos de síntese semelhantes.

O metanol bruto segue para a última estação, uma construção com pé-direito alto que em seu interior guarda uma estrutura que se assemelha a uma petroquímica, com tubos e torres. Aqui, por aquecimento, o metanol é separado da água, que é descartada, e segue para as torres onde é submetido à ação de um reator, com outro catalisador, e se transforma em gasolina.

De acordo com o gerente da HIF, porém, são dois tipos de gasolina, leve e pesada, na razão de 85/15%, respectivamente. Segundo ele, a leve está pronta para consumo, enquanto a pesada precisa ser tratada para se tornar leve. Como em uma petroquímica, esse processo gera um resíduo, que é queimado ao final.

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Etanol

A neutralidade dos combustíveis sintéticos é a mesma obtida pelo etanol, uma vez que a cana-de-açúcar retira o CO2 da atmosfera para devolvê-lo no momento seguinte, da queima. Os partidários dos e-fuels afirmam que é melhor se ter uma usina do que uma plantação de cana, em uma área que poderia receber outra cultura.

E que os combustíveis sintéticos não requerem adaptações nos carros. Mas esses argumentos podem ser rebatidos. As adaptações são necessárias apenas nos carros antigos, porque os novos já suportam o combustível, vendido em outros mercados como o americano e europeu. E o etanol de segunda geração não demanda o aumento das áreas de cultivo, segundo seus defensores.

Cana
A cana beneficiada traz maior produtividade (Reprodução/Internet)

Perfume e vodka

A americana Air Company, fundada em 2019, aposta na produção de etanol sintético para fins diversos. Seu processo de produção é o mesmo da HIF, com o uso de CO2 e H2O, embora com o emprego de catalisadores específicos para gerar etanol. Uma diferença interessante, apresentada pela empresa, é que o CO2 que seria lançado na atmosfera é captado em chaminés de fábricas.

Entre os produtos oferecidos há um perfume, chamado AIR Eau de Parfum (“com toques de laranja, figo, jasmim, azaleia e almíscar”), vendido a US$ 220, o frasco de 50 ml; e, em breve, será lançada vodca feita com álcool sintético.

Perfumes
(Reprodução/Internet)

No ar e no mar

Combustíveis sintéticos (etanol, gasolina, diesel, querosene) também são vistos como alternativa para a descarbonização da aviação e do transporte marítimo, uma vez que motores elétricos nessas aplicações ainda são inviáveis, por conta de custos, peso e autonomia. Aviões e navios emitem grandes quantidades de poluentes. O caso dos aviões é mais grave, porém. Além de emitir bem mais, o lançamento dos gases ocorre nas camadas mais elevadas da atmosfera, o que agrava o problema do efeito estufa. Na aviação, o desafio é encontrar um combustível alternativo que tenha a mesma densidade energética e o mesmo ponto de congelamento do querosene fóssil. Já existem diversas formulações dos chamados SAF (Sustainable Aviation Fuel) que utilizam misturas de compontentes de diferentes origens. Algumas adicionam biocombustíveis, como etanol, resíduos industriais, sebo bovino, óleo de cozinha, restos de madeira, entre outros ingredientes. Na navegação marítima, os e-fuels também são considerados misturados a metanol, ammonia, mas, como navios não evoluíram tanto como aviões, nos últimos anos, há propostas de melhorias no design das embarcações – na forma dos cascos (para melhorar a hidrodinâmica) e nas dimensões (para ampliar a capacidade e reduzir o número de viagens) – e até de se reduzir as emissões, navegando em velocidades menores para poupar o consumo.

Avião Embraer
A aviação pretende adotar combustíveis alternativos até o final desta década (Embraer/Reprodução)
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