Na madrugada de 6 de junho de 1944, uma imensa frota de tanques customizados partia da Inglaterra rumo à França, em um dos momentos mais importantes da História. Rebocadas por gigantescas balsas, as centenas de blindados eram ideias de um soldado excêntrico, e foram ridicularizadas antes de liderar o desembarque aliado na Normandia.
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O chamado Dia D marcou a virada da Segunda Guerra Mundial no oeste europeu, iniciando uma corrida entre soviéticos e a coalizão liderada por britânicos e americanos para ver que chegaria em Berlim primeiro, derrubando os nazistas e encerrando o conflito por lá.
Sob o codinome de Operação Overlord, essa foi, em vários aspectos, a maior operação logística da história, e diversos veículos foram construídos especialmente para avançar sobre as praias francesas. Um deles foi baseado no M4 Sherman, o tanque que ‘aprendeu a nadar’.
Do it yourself
Abreviação de ‘Medium Tank 4’, o M4 Sherman foi o blindado mais popular dos Aliados na Guerra. Ele foi lançado pelos EUA em 1942, como resposta aos primeiros tanques americanos do conflito, que apresentavam desempenho sofrível.
Mesmo inferior aos alemães Tiger e Panther, o M4 honrou a tradição de produção em massa popularizada por Henry Ford, e seu projeto mais simples permitiu que fosse fabricado com extrema facilidade, em qualquer planta industrial disponível. Não à toa, quase 50 mil foram produzidos e distribuídos aos diversos exércitos aliados, vencendo, literalmente, na quantidade.
Um dos pontos mais incríveis do blindado era seu motor C9. Sim, você leu certo: era um incrível motor R975 radial 16.0, com 9 cilindros e movido a gasolina. A razão disso era prática, já que se economizava material — o motor radial utiliza apenas uma biela — e a manutenção era mais fácil, podendo os cilindros serem trocados sem que o bloco fosse removido do chassi maciço de até 7 cm de espessura. Outro detalhe era a refrigeração a ar, muito útil para que eventuais perfurações do motor não causassem vazamento do líquido de refrigeração.
Fazendo inveja a muita picape moderna, o Sherman também já contava com bloqueio de diferencial, e usava justamente esse sistema para fazer curvas, transferindo mais ou menos força aos seus lados. Para agilizar o esterçamento, também havia freios individuais para cada lagarta.
Outro detalhe muito importante era — curiosamente — a suspensão: essencial para que os atiradores tivessem estabilidade de mira durante os combates. Mais uma vez a criatividade rendeu frutos e ao longo da guerra o blindado contou com três tipos de suspensão baseada em molas volutas.
Esse tipo de mola é fabricado a partir de chapas de aço especial, enroladas até formar uma espécie de cone. As volutas, além de aguentarem mais peso que molas convencionais, também são mais compressíveis.
Comparativo: VVSS x HVSS
O mais eficiente dos sistemas de suspensão era o HVSS, lançado em 1944. Ele consistia em novos braços de suspensão que transmitiam o peso do tanque para molas dispostas horizontalmente. Além de rodagem mais suave, a redução de altura permitiu instalação de um amortecedor hidráulico auxiliar. Por fim, novos eixos duplos ampliavam a área de contato com o solo e melhoravam a tração.
Monte seu tanque
A facilidade de construção do Sherman significou, também, alto grau de personalização. Desse modo, além do veículo ser aperfeiçoado à medida que seguia em combate — lembre-se, a guerra não dá tempo à prototipagem —, engenheiros pensavam soluções para terrenos e batalhas que iam de praias da Oceania a pântanos da Rússia.
Um desses inventores era Percy Cleghorn Stanley Hobart, que aos 55 anos havia sido enviado à Reserva por conta de suas ideias mirabolantes para infantaria blindada. Fora de combate, Hobart foi enviado para o batalhão civil de sua cidade natal, onde ajudou a criar um sistema de defesa tão eficiente que chamou a atenção de ninguém menos que Winston Churchill, que o trouxe de volta para o Exército.
Lá o inventor pode acompanhar o ataque à cidade de Dieppe, em 1942, quando os Aliados tentaram desembarcar na França pela primeira vez. Hobart notou que o fracasso dos tanques em avançar sobre a praia deixou os soldados desprotegidos. Suas ideias para o futuro desembarque na Normandia, baseadas no que observara, chegaram a Churchill e a ninguém menos que o general Dwight Eisenhower.
As ‘Gracinhas’ de Hobart
Com aval do Estado-Maior aliado, os projetos de Percy Hobart começaram a ser produzidos, aproveitando imensamente a versatilidade do Sherman. Apesar da resistência inicial, os americanos foram obrigados a aceitar a necessidade de um tanque não só capaz de trafegar por águas rasas, mas também com flutuadores e propulsão a hélice, já que era impossível prever a profundidade na qual o desembarque seria necessário.
Como o engenheiro era alvo frequente de piadas, suas invenções ganharam o nome de “Hobart’s Funnies”, ou “Gracinhas do Hobart”.
Inspirado por Hobart, o Sherman Duplex Drive foi projetado exclusivamente para o Dia D. A ideia era que os agora anfíbios caíssem na água a cerca de 5 km da areia, percorrendo esse trajeto em 10 minutos. Em caso de mar revolto, os tanques deveriam seguir junto dos soldados até partes mais rasas.
Para cumprir essa inusitada tarefa, os veículos tiveram a porção inferior do casco completamente selada. Além disso, hélices de propulsão foram conectadas ao motor através de uma transmissão especial — daí o nome Duplex Drive (‘tração dupla’, em tradução livre) — e foram encaixados snorkels ao escapamento.
Por fim, como 30 toneladas não boiam naturalmente, foi utilizado um mecanismo chamado de tela de Straussler — homenagem ao seu criador, Nicholas Straussler. Essa tela de lona carregava boias com ar comprimido e, além de fazer o tanque flutuar, se erguia ao redor da torre, evitando que a água do mar entrasse nos canhões e metralhadoras.
Sabe a famosa abertura do filme “O Resgate do Soldado Ryan”, na qual alemães causam uma carnificina em soldados que desembarcam indefesos na praia de Omaha? A ideia, em 1944, é que três batalhões blindados chegassem antes no local, enfraquecendo a artilharia alemã e protegendo os soldados. Entretanto, o mar revolto fez com que apenas dois veículos conseguissem atingir o local.
Sem comunicação efetiva e nenhuma possibilidade de recuo, restou aos fuzileiros navais enfrentar de peito aberto os nazistas, na cena imortalizada por Tom Hanks e companhia.
Em outras praias do desembarque, entretanto, as coisas correram mais próximas do planejado, e os DDs puderam fornecer apoio às tropas terrestres.
Pau pra toda obra
Além da versão anfíbia, o Sherman teve outras variantes úteis ao Dia D e à Guerra em geral. Uma das mais importantes foi o Crab (‘caranguejo’), que trazia uma extensão frontal com pesadas correntes, que giravam rompendo arames farpados e explodindo minas.
Feito por ordens de Percy Hobart, o Sherman Crab movia essas correntes através de outro diferencial, que dividia a potência entre a tração e o giro do mecanismo a 142 rpm. Além disso, o Crab carregava sacos de giz e granadas de fumaça, que explodiam periodicamente e marcavam caminho seguro para as tropas.
Pau ‘pra’ toda obra, os Shermans também serviram como tratores, rolos compressores para pavimentação de pistas improvisadas e até como lança-chamas, substituindo o canhão de 76 mm por uma bomba pressurizada que jorrava napalm.
O papel de Percy Hobart e suas ‘gracinhas’ foi tão grande, que o engenheiro foi, em poucos anos, de motivo de chacota a major-general condecorado pelo Reino Unido, tornando-se Sir Percy Hobart.
Aos poucos o Sherman ficou obsoleto e em 1957 os EUA encerraram de vez seu uso. A importância do blindado médio ficou marcada na cultura popular e, ao longo da Europa, é comum ver modelos usados como monumentos à Libertação, em praças e museus.
Famosinho, o tanque ainda foi ‘estrela’ do filme “Corações de Ferro”, de 2014, colocando ninguém menos que Brad Pitt e Shia LaBeouf como coadjuvantes. O longa retrata a tripulação de um Sherman M4A3E8 durante os meses finais da Segunda Guerra Mundial e (sem spoilers) mostra a valentia que fez dessa uma das principais armas da vitória.
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