A dificuldade de um rali tão grande como o Sertões 2022, que se estenderá por mais de 7.200 km, não está apenas em ser rápido e acertar todas as indicações do navegador — quando há. É preciso manter o carro em condições de competir. Todos os dias. Ou melhor, todas as noites.
Encontramos Edmundo Evangelista, o Edinho, chefe de oficina da equipe X-Rally, no dia de trabalho mais intenso para sua equipe de mecânicos. Os carros haviam acabado de encarar o maior trecho cronometrado desta edição do Sertões, 527 km entre Costa Rica (MS) e Barra do Garças (MT), e nos dois dias seguintes enfrentariam a primeira maratona do rali.
Em resumo: todos os cinco carros da equipe deveriam ficar em perfeito estado, inclusive com algumas manutenções antecipadas. Isso porque seus mecânicos só poderiam colocar as mãos nos carros novamente dali a dois dias, em Palmas, após quase 1.000 km de deslocamento.
No meio do caminho, em São Félix do Araguaia (MT), apenas o piloto e o navegador poderiam colocar as mãos nos carros. E por tempo limitado. É mais uma questão de ter a sorte para não quebrar o carro do que um problema em si, pois há muitos pilotos e navegadores que são engenheiros, e eles passam por treinamento de oficina com a equipe.
Sabem como montar e desmontar um carro. Ou como fazer uma gambiarra no meio da prova. Naquele mesmo dia o piloto Rafael Capoani, que navega para o piloto Sylvio de Barros, mostrou como conseguiu completar a especial do dia com uma barra de direção quebrada na solda: usou duas abraçadeiras que tinha no carro, chaves de boca e fita isolante para fixar a barra e seguirem na competição.
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Campanha itinerante
Edinho logo nos confidenciou que não dormia havia três dias. Os carros retornam das etapas no final da tarde e os trabalhos costumam se estender até o meio da madrugada. Não restam muitas horas até a saída dos carros das vilas do Sertões, por volta das 7h30. E também não é fácil dormir nos ônibus das equipes enquanto se deslocam por estradas (muitas delas em condições precárias), durante o dia.
A oficina é ali mesmo: em qualquer lugar onde todo o circo do Sertões para. Pode ser em uma grande área aberta, no centro de convenções da cidade, no estacionamento de um autódromo ou até mesmo nas ruas das cidades por onde o rali passa, de frente para residências, como fez a Casarini e outras equipes em Costa Rica (MS).
A estrutura itinerante está em caminhões-oficina-almoxarifado, cujo tamanho também depende da equipe. Há equipes de motos com vans, outras com carretas emprestadas sendo usadas como estoque.
Já contamos sobre a megaestrutura da X-Rally. Para ter uma ideia, um caminhão Man TGS 6×6 que competiu o Rally Dakar e foi importado da Bélgica (onde fora emplacado) guarda uma parte do estoque suficiente para montar três carros inteiros.
Outra parte do estoque está em uma carreta posicionada no lado oposto, onde um um grupo de mecânicos segura um câmbio e outro realiza uma solda em outra peça. Um terceiro caminhão fecha a área da equipe em forma de “U” com mais estoque de peças na parte inferior e rampa para transporte de carros e pneus na parte superior.
Eles começaram o rali com peças suficientes para montar três carros, com direito a partes do chassi tubular, motor, câmbios e mais de 300 pneus. Precavidos? Imagina…
Revisões diárias
Todos os dias todos os carros precisam passar por, pelo menos, uma revisão completa em busca de indícios de que algo precisa ser reparado preventivamente. Os pneus também são substituídos diariamente: cada etapa chega a consumir metade da borracha dos sulcos.
Naquele dia, porém, peças que se aproximavam do limite de uso, sempre calculado de acordo com o percurso da especial, seriam trocadas, assim como todos os óleos lubrificantes, do motor aos diferenciais. “Nós usamos óleo de melhor qualidade, que poderiam durar seis meses, mas trocamos a cada dois dias ou a depender da especial do dia seguinte”, conta Edinho. Amostras dos lubrificantes ainda são recolhidas e enviadas para a análise do fabricante.
Os câmbios sequenciais de seis marchas não só têm seu lubrificante substituído como também são retirados para inspeção após as etapas mais árduas.
A suspensão, por sua vez, é desmontada diariamente para verificação de folgas, apertos e dos próprios componentes. Amortecedores só são trocados em caso de quebra, mas têm seu óleo e o gás pressurizado substituídos eventualmente.
O detalhe é que tudo é feito sobre uma lona grossa, com os carros sobre um cavalete. Não há elevador: o trabalho sob o carro é feito deitado em um skate ou no chão mesmo, com holofotes apontados para o carro e com muita ajuda de outros mecânicos. A conta da equipe é de cinco mecânicos para cada par de carros.
Carros que não são carros
Os faróis, lanternas e para-brisa enganam. Mas as Ford Ranger e Toyota Hilux que correm pela X-Rally são, na verdade, protótipos. Um chassi tubular pensado especificamente para ralis apenas recebe estas peças para se passar por picapes convencionais. A “lataria” é de fibra de vidro e as portas, de fibra de carbono. Alguns são importados da África do Sul, outros são fabricados no Brasil.
Quem vê os carros correndo não imagina que motorista e navegador encaram a prova em um cockpit tão pequeno e com assoalho tão elevado, pois o cardã passa sob eles. Atrás, vão o tanque, algumas peças e sistemas como os extintores.
Enquanto os carros que emulam as Toyota Hilux usam motores V8 da Lexus, as Ford Ranger usam o motor V8 5.0 Coyote do Ford Mustang. São praticamente as Ranger Raptor dos sonhos.
O motor que originalmente tem 483 cv é preparado pela equipe com “segredinhos” que Edinho não revela para passar dos 500 cv. Mas um restritor é usado na admissão para limitar a potência dos carros e, assim, nivelar eles. Desta forma, a entrega varia entre 380 e 400 cv. Para uma Ranger, já está de bom tamanho.