Por que faltam carros, matérias-primas e contêineres durante a pandemia?
Um erro de cálculo deixou a indústria sem chips eletrônicos. E seus efeitos serão sentidos até o final de 2022
Até poderia ser mentira, mas no dia 1º de abril de 2020 nenhum carro foi produzido no Brasil. Sem aviso prévio, a Covid-19 chegou e forçou a parada total das fábricas brasileiras, que começaram por volta do dia 20 de março a interromper as atividades de maneira sem precedentes.
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Após dois meses de estagnação, as máquinas foram religadas e os responsáveis pela cadeia de suprimentos extremamente complexa das montadoras reiniciaram seus pedidos de peças e matérias-primas.
O problema é que, enquanto o fluxo de suprimentos é rigidamente cronometrado e metódico, a Covid-19 seguiu desalinhando constantemente o ritmo de negócios do planeta.
As montadoras até sofreram com falta momentânea de aço e borracha, mas conseguiram a solução através de rearranjos, mais dinheiro ao fornecedor e mais cobrança ao consumidor. O caso dos semicondutores, entretanto, foi completamente diferente.
Idade da eletrônica
Os chips estão para qualquer computador assim como os genes estão para os seres vivos. E isso vale para tudo: do iPhone ao sensor de pressão dos pneus, incluindo notebooks, TVs e todos os tipos de eletrodomésticos que, com o isolamento social, tiveram disparo na demanda por conta do home office ou mero lazer.
Ao mesmo tempo, a mineração de criptomoedas também ganhou força a ponto de abocanhar parcela significativa da produção.
Com demanda extra de um lado e pedidos cancelados do outro, a solução lógica para aliviar a pressão foi transferir a cota das montadoras para outros setores, jogando a indústria automobilística para o fim da fila. A reportagem apurou que houve até mesmo rifas de “direitos de compra” para os poucos estoques disponíveis.
Obviamente, trocar um chip por outro não é simples como mudar o fornecedor de pneus, e devido à altíssima complexidade e custos, a indústria de semicondutores é uma das mais concentradas do mundo, situada majoritariamente em Taiwan.
Com a província da China em lockdown severo, assim como outros países asiáticos fabricantes de chips, a coisa piorou, e a demanda crescente foi atendida com oferta limitada.
Casa em chamas, telefone sem fio
O cenário crítico seguiu piorando, com os problemas de outras indústrias atrapalhando a chegada dos poucos chips disponíveis às fábricas de automóveis.
Uma análise de pesquisadores australianos e bengaleses constatou que, além da produção limitada por conta do isolamento social, fronteiras mais restritas e problemas no frete foram um dos piores aliados no caos.
Isso ficou evidente no transporte marítimo, sempre calculado de modo que os navios levem carga nos trechos de ida e volta. O dominó derrubado nesse caso, explica a gestora global de carga Hillebrand, veio quando as embarcações esvaziadas em portos da Europa e América não tinham, de modo inédito, o que levar para a Ásia.
Como contêineres vazios dão prejuízo, as transportadoras preferiram deixá-los onde estavam, retornando sem nada para o Oriente. Só se esqueceram de que esses compartimentos já eram dados como certos para acomodar novas levas de mercadorias vindas da China e cercanias, que acabaram canceladas.
Com mais essa escassez, o preço do frete transoceânico explodiu, e despachar um baú de tamanho padrão foi dos US$ 1.400, em janeiro, para US$ 2.600 em outubro.
A fim de manter o negócio viável, relata a Hillebrand, navios aproveitaram o petróleo barato e começaram a contornar o Cabo da Boa Esperança, evitando ao estilo português as taxas para atravessar o Canal de Suez – posteriormente reduzidas. Até que isso ocorresse, entretanto, as viagens duraram, em média, 16 dias a mais.
Para reduzir os danos, fábricas brasileiras chegaram a utilizar helicópteros para buscar os carregamentos que chegavam ao litoral, mas não foi suficiente para evitar as seguidas paralisações.
“Estimamos que a falta de semicondutores tenha impedido que algo entre 100.000 e 120.000 veículos fossem produzidos no primeiro semestre”, disse o presidente da Anfavea, Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, Luiz Carlos Moraes.
Por falta de matérias-primas, todas as marcas com fábricas no Brasil, exceto Fiat e Jeep, sofreram com paradas. Uma das mais notáveis foi a da planta gaúcha da Chevrolet, em Gravataí, onde são produzidos os sempre líderes de vendas Onix e Onix Plus. Segundo a GM, cada unidade do hatch ou do sedã utiliza cerca de 1.000 semicondutores, e a incapacidade de tê-los todos disponíveis ao mesmo tempo foi a causa de meses de suspensão.
A americana tomou a decisão nobre de não simplificar a eletrônica embarcada na linha, mas também não conseguiu repor o estoque das concessionárias, que, mal-humoradas, viram os emplacamentos do hatch caírem 96% entre janeiro e agosto, à medida que os estoques acabavam.
No caso da VW a solução foi inversa, retirando ironicamente a central multimídia do Fox Connect e tornando-a opcional em modelos de prestígio, como o SUV compacto Nivus.
No exterior, houve casos ainda mais extremos, como os luxuosos Cadillac Escalade e GMC Sierra perdendo o sistema start-stop. A Audi recorreu a chaves tradicionais, do tipo canivete, em algumas linhas. A Ford estima que, só no primeiro semestre, a falta das peças resultou em 700.000 veículos que deixaram de ser fabricados globalmente.
Lição de casa
Pioneira na produção com estoques reduzidos, a Toyota teve a oportunidade ingrata de testar sua estratégia em 2011, quando o Japão foi arrasado por um terremoto, que trouxe junto um tsunami e um desastre nuclear.
Com fornecimento interrompido por meses, a matriz concluiu que certos estoques precisavam de mais gordura, maior tempo sem necessidade de reposição. Essas lições, porém, não adiantaram muito, e a marca também parou.
Como Fiat e Jeep se safaram no Brasil? As ex-FCA seguiram firmes durante o ano e, mesmo tirando o pé, não chegaram a parar. “Havia briga entre as plantas de Minas e Pernambuco por pacotes de parafusos importados da Itália”, diz uma fonte.
Os meses de março e abril foram os mais críticos, com alívio vindo após a chegada de novos fornecedores. “Mas, ‘do nada’, algo ainda se desabastece e começamos a correr à procura de peças básicas”, afirma.
Os Estados Unidos estão preparando plano estratégico defendido pela pesquisadora alemã Saskia Sardesai, especialista em cadeia de suprimentos pela Associação Fraunhofer.
“As cadeias são tão complexas que várias companhias nem sequer sabiam todos os seus fornecedores”, explicou ao periódico alemão Merkur. Sardesai e outros observadores concordam que estoques grandes não solucionarão o problema de maneira viável, e que a única saída é ter maior controle sobre todas as etapas produtivas, com informações mais precisas e em tempo real.
Os americanos também investirão em fábricas locais de chips, para reduzir a dependência asiática. “Dominar a tecnologia de semicondutores é fundamental para inserir qualquer país nas tendências do futuro”, declarou o doutor em física pela Unicamp Cloves Rodrigues. Isso, porém, leva tempo; muito mais do que os cerca de seis meses gastos para a produção de um lote de semicondutores.
Como no trânsito, esse engarrafamento acabará, mas vai demorar. Apenas no final de 2022, acredita o CEO da Ford, Jim Farley. Até lá, os poucos carros serão disputados e vendidos com preços salgados.