Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a dependência global do petróleo ficou ainda mais evidente, tanto pela já conhecida questão climática quanto pela concentração de reservas em poucos países. Para além da eletrificação automotiva, entretanto, novas tecnologias vêm sendo desenvolvidas para que os combustíveis tradicionais não precisem vir do subsolo.
É o caso da Haru Oni, a primeira fábrica de gasolina sintética do mundo que teve sua construção iniciada em setembro passado, no Chile. Em iniciativa liderada pela Porsche, o e-combustível, como vem sendo chamado, será produzido a partir de água e gás carbônico e pode ser utilizado normalmente em qualquer carro a gasolina.
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Parece simples, e de fato basta relembrar a Química da escola para entendermos a lógica que levou os alemães ao extremo sul do Chile, na região de Magalhães: dado que o “grosso” da gasolina é composto pelos hidrocarbonetos (átomos de carbono e hidrogênio), bastaria obtê-los e juntá-los através de processos industriais para produzir o combustível sem recorrer ao petróleo.
Esse, entretanto, é um processo caro, e que não representaria vantagem alguma não fosse em lugares como a Patagônia chilena, onde ficará a usina de Haru Oni. Lá os ventos da “fronteira” entre América do Sul e Antártida não são apenas abundantes, como também constantes em frequência e direção — perfeitos para a geração de eletricidade.
Essa energia elétrica serve para o simples (porém gastão) processo de eletrólise, que separa a água em moléculas de gases hidrogênio e oxigênio utilizando o produto de turbinas eólicas instaladas pela Siemens no local.
Não bastasse um processo energético não-poluente, a ambição do consórcio apoiado pelo governo chileno é de, na verdade, limpar a atmosfera, uma vez que ⅔ da água vira “hidrogênio verde” enquanto o resto volta ao meio ambiente em forma de oxigênio puro. O lucro aumenta no processo seguinte, que acrescenta o carbono à receita num processo que captura gás carbônico (CO2) do ar, diminuindo o efeito estufa.
Daí em diante a coisa fica mais complexa — tão complexa que foi necessária participação de gigantes energéticas como a ExxonMobil, responsáveis por tecnologias cedidas à iniciativa. O resultado, por outro lado, não poderia ser mais simples: gasolina, transportada de navio à Europa, onde começarão testes que incluem a Porsche Supercup de 2022.
A confiança da fabricante no projeto é muito grande, e um dos argumentos citados é a necessidade de diminuir emissões ao mesmo tempo que a corrida por carros elétricos não se torne um processo caro para os consumidores e marcado por desperdício. “Cerca de 70% de todos os Porsche já construídos ainda estão rodando hoje. Os e-combustíveis permitirão a redução em até 90% de emissões em motores a combustão”, disse Michael Steiner, membro do Conselho Executivo de Pesquisa e Desenvolvimento da marca.
Visão macro
Ao contrário do que volta e meia parece, os carros com gasolina sintética poluirão, mas com créditos graças à limpeza feita na etapa de produção do e-combustível. É justamente esse entendimento, acredita Steiner, que falta nos planos de proibição de motores térmicos a partir de 2035, como proposto pela União Europeia.
“O problema não é o motor, mas a origem fóssil do combustível (atualmente utilizado). Sabemos da questão do banimento (…), mas acredito que convenceremos os legisladores quanto a isso”, disse a QUATRO RODAS. “Atualmente há cerca de 1 bilhão de carros no mundo movidos a combustíveis fósseis e precisamos cuidar dessa gigantesca frota também”, acrescentou destacando que o esforço da Porsche — envolvida em carros a gasolina sintética, hidrogênio e eletricidade — representa a mudança ampla, gradual e sustentável na qual acredita.
As ambições do alemão são tão altas quanto os aviões comerciais, que realizaram quase 40 milhões de voos ao longo de 2019. No caso dos jatos, a eletrificação é quase ficção científica, uma vez que o peso das baterias (já um fardo para os carros) torna inviável qualquer “Tesla dos ares”, ao menos em breve.
“Olhando para indústrias como as de navios e aviões, não tenho ideia de como os combustíveis líquidos podem ser substituídos. A saída é trocar os combustíveis fósseis pelos e-combustíveis, e nosso projeto representa um primeiro passo, uma demonstração dessa oportunidade”, explicou.
Brasil de fora?
Questionado sobre a escolha de uma região mais distante da Europa enquanto o Nordeste brasileiro, por exemplo, ofereceria ventos e infraestrutura bem localizados, Steiner ressaltou que a ideia também envolveu criar infraestrutura onde até então há apenas potencial.
Estima-se que a região de Magalhães possa produzir sete vezes o que hoje é gerado por todo o Chile, que usou a oportunidade para gerar empregos e, principalmente, fincar bases como exportador de energia. “Mais do que ventos, o Chile tem autoridades interessadas nesse tipo de energia e na ideia de exportá-la”, fez questão de frisar o executivo.
De acordo com a Siemens, o comércio de energia pode trazer prosperidade a “áreas desérticas, sem recursos para produção de biomassa, ou regiões com muitos ventos mas pouco desenvolvimento industrial”. E se o petróleo que estava debaixo do deserto vem sustentando a pujança do Oriente Médio, pode ser a energia solar e eólica a salvação desses países, assim como de Brasil e Espanha, que já firmou tratados com a empresa.
Preço alto
Com a construção na Patagônia iniciada, é questão de meses para que a usina chilena seja aberta; previsão para meados de 2022. Já neste ano serão fabricados 130.000 litros de gasolina sintética, com ambição de 55 milhões de litros produzidos ao longo de 2024.
Isso é extremamente necessário para que o litro do combustível seja viável. Segundo apuração do MotorTrend, o custo inicial será de 10 euros (R$ 55,32) por litro, justificando os testes limitados da nova gasolina.
Dando tudo certo, porém, daqui a quatro anos a Haru Oni fabricará 550 milhões de litros de gasolina anuais — equivalente a 10.000 barris de petróleo ao dia. Nessa escala, a expectativa é que o preço ao consumidor chegue a US$ 2/litro. Ainda é caro, mas já equivale ao preço cobrado em março de 2022 nos EUA, com a explosão do valor do barril no mercado.
Caso as políticas governamentais se mantenham, o e-fuel pode ser usado proporcional à gasosa de origem petrolífera, abatendo o custo. O mesmo vale para isenção fiscal a quem revender o líquido verde, que gradualmente se restringirá a modelos clássicos ou especiais.
É um caminho tortuoso, mas dá para dizer que os petrolheads têm motivos para dormir esperançosos e sem culpa.
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