* Reportagem originalmente publicada em abril de 2008.
O dia mal amanheceu e um pelotão de carros – todos pretos – parte seguindo uma picape, dirigida pelo único a saber o caminho e o destino. Após quase meia hora de curvas sinuosas, estradas estreitas e de terra batida, chega-se a um portão, onde um segurança aguarda, com um rádio na mão. Há uma casa ao fundo e uma mata, mas o Opala cravejado de balas e os alvos para tiros entregam: esse não é um sítio comum.
Assim é o centro de treinamento da Bodyguard, empresa especializada em treinar de seguranças. Naquela manhã, o “exército” a ser preparado era formado por 18 agentes de segurança de uma grande empresa de Amparo (SP), cuja missão diária é conduzir e escoltar os carros dos diretores.
Ao volante, eles precisam estar prontos para defender a vida de quem está no banco de trás. E, para isso, passam por exercícios por vezes mais intensos e inusitados do que se imagina.
“Nos últimos anos tem aumentado muito a demanda por esse tipo de treinamento, tanto dos seguranças quanto dos próprios diretores de empresas, que querem aprender a dirigir veículos blindados”, diz Robson do Prado, instrutor da Bodyguard. Em uma sala de aula, o curso começa com todo o conteúdo teórico.
“Não tem pra Iraque, Afeganistão, Faixa de Gaza não. O país mais violento do mundo é aqui”, diz Robson, que mantém a atenção dos alunos por três horas com números de homicídios e acidentes de trânsito, fotos de tiros e mapas de locais violentos em São Paulo e Rio de Janeiro. Sobre a mesa, armas de vários calibres. Depois vem a tão esperada parte prática.
O primeiro exercício ocorre ainda em um aparelho inusitado: um simulador de capotagem. Fixado a uma base giratória, um Ford Escort permite aos passageiros experimentarem a sensação de uma capotagem. “Tenho um curso específico só para ensinar como sair de um carro capotado. Aí eu encho o carro de caixa, livro, tudo o que imaginar, pra eles aprenderem a não levar objetos soltos no carro”, diz Robson.
De lá, o comboio de carros parte para um kartódromo, onde os alunos dão início aos exercícios de slalom, desvio de obstáculo e frenagem. Depois das manobras mais simples, os alunos praticam situações evasivas, como fuga, cavalos-de-pau e reversão de ré.
Para tornar o clima ainda mais real, os instrutores utilizam fardas, máscaras e armas de paintball – que ajudam a simular a adrenalina de ser alvejado e a baixa visibilidade de um vidro blindado atingido por tiros.
Depois os alunos aprendem como se posicionar caso sejam obrigados a entrar no porta-malas do veículo. “Tem que proteger o pescoço e flexionar as pernas assim”, diz Robson, usando um dos seguranças como exemplo. E, enquanto o rapaz está no porta-malas, outro assume o volante e se encarrega de manobras bruscas e gritos para simular uma perseguição.
“Já fiz cursos como esse, mas é sempre bom quando temos a chance de fazer outra vez. É quando a gente tem a oportunidade de testar nossos limites na prática”, diz Elisângela Silva, única mulher da turma, que começou como vigia da empresa e acabou sendo promovida ao corpo de seguranças.
Se por um lado sente a desconfiança por parte de alguns, ela crê que o fato de ser mulher às vezes ajuda. “Algumas diretoras preferem trabalhar comigo, principalmente as que têm crianças, porque sabem que tenho mais jeitinho”, diz.
A adrenalina do treino raramente se repete no dia-a-dia: é consenso entre todos que, quanto mais atento ao volante estiver o segurança, menos situações de risco ocorrerão. “Tive que reagir só uma vez, quando trabalhava para um banco. Em São Paulo, próximo à avenida Paulista, abordaram o carro que eu escoltava. Tive que atirar no bandido”, diz Luciano Nogueira.
Ele afirma que o fato foi um divisor de águas em sua carreira. “É um momento difícil, porque, por mais que a gente esteja preparado, nunca sabe como vai reagir quando realmente precisa.” E, para os apaixonados por carro, essa tensão é recompensada pela oportunidade única de dirigir carrões.
“Alguns diretores têm Porsche, Land Rover, BMW… Em algumas viagens, eles deixam a gente dirigir esses carrões. Mas é para poucos, uma espécie de prêmio para os motoristas de confiança”, diz um dos seguranças, que prefere não se identificar – para não despertar a inveja dos colegas.
Coitado do cachorro
Cabelos e bigodes brancos, Manoel Ramos, 76 anos, talvez não desperte a menor suspeita de ser um agente de segurança. Dentre os mais de 340 agentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, ele é o mais insuspeito. Quem olha acha que ele nunca teria o ímpeto de reagir a um assalto. Pois já reagiu a três – um deles em serviço.
Há alguns meses, quando levava um desembargador, foi abordado por um ladrão no cruzamento da avenida Ipiranga com a São Luís, no centro de São Paulo. “Quando percebi que ele não estava armado, pedi calma e disse que ia pegar o dinheiro. Aí me atraquei com ele. Puxei o braço dele com força, acho que consegui quebrar. Acabei me machucando um pouco”, afirma.
Ramos trabalha como agente de segurança do Tribunal desde 1978 – quando a frota era composta por Ford Galaxie e Willys Itamaraty e se andava com os vidros abertos.
Sempre de terno, Ramos faz questão de chamar os desembargadores de Sua Excelência. “Alguns não admitem que você esteja sem paletó. Outros não gostam que você ligue o rádio… Cada um tem seu jeito, a gente tem que respeitar”, diz.
Ramos leva a sério a máxima de que sua missão é garantir a segurança do passageiro, a qualquer custo. Ele conta que uma vez levava um desembargador a Marília (SP). Sob forte chuva e em alta velocidade, de longe ele viu um cachorro na estrada. Não teve dúvida: manteve o pé no acelerador e passou por cima do animal.
Questionado pela esposa do desembargador, compadecida do animal, Ramos respondeu firme: “Não podia não, senhora. Se tento desviar, na contramão, coloco em risco a vida da senhora, a do seu esposo e a minha também. E digo mais: se fosse um ser humano, faria o mesmo”. A viagem prosseguiu, em silêncio.