Minha leitura de férias (mês passado) foi o livro O automóvel e seus sentidos mutantes (editora Fontenele Publicações), que meu amigo e jornalista Sergio Quintanilha, ex-redator-chefe de QUATRO RODAS e atual editor-chefe do Guia do Carro (Terra), lançou este ano, e é uma versão adaptada de sua tese de doutorado em Ciências da Comunicação, cujo título original é “O automóvel como signo: fetichismo da mercadoria e desejo no jornalismo automotivo”.
O tema é a transformação do significado do automóvel para a humanidade ao longo do tempo. O autor analisa o que essa máquina criada no final do século 19 representou ao longa da história, considerando a percepção predominante – uma vez que, como ele mesmo destaca, cada pessoa pode ter um entendimento próprio sobre esses carros.
Sem medo de dar spoiler, porque uma tese é um trabalho de fôlego e o livro tem 328 páginas, Quintanilha mostra que no princípio, no tempo que o automóvel era considerado uma carruagem sem cavalos, o carro não tinha importância na vida das pessoas, não havia estradas e o carro era como um brinquedo de gente rica. Somente com a invenção das linhas de montagem, por Henry Ford, a partir de 1913, o carro passou a ocupar o centro das atenções na sociedade.
Nos anos 1940, por conta da Segunda Guerra, o automóvel era visto como algo inútil e perigoso, sem permissão para circular e sendo um alvo fácil nas ruas. A década de 1980 ilustra um período (que iniciou bem antes e terminou muito depois) em que o carro reinou como símbolo de status, praticidade, liberdade, privacidade e inovação.
Muito diferente do que surge nos anos 2020, quando o carro é associado à perda de tempo, prendendo as pessoas nos congestionamentos, e aos problemas ambientais. De objeto de desejo e glamour, o carro se tornou apenas um dos muitos meios de transporte disponíveis, sendo nem sempre o melhor.
A leitura do livro me interessava não só pelos carros, mas também pelo papel do jornalismo nessa história. Afinal, é o jornalismo ou, de forma mais ampla, a comunicação que legitima ou traduz os significados de todas as coisas na sociedade.
Confesso que li alguns trechos do livro com má vontade, assumindo minha paixão pelos carros – embora não me considere cego, por conta disso. Mas Quintanilha não nega que o carro é e continuará sendo objeto de desejo. O autor diz que o carro apenas deixa de ocupar o centro das atenções e passa a dividir espaço com outros modais de mobilidade. Um sinal dessa transformação seria o fato de algumas marcas mudarem sua autodesignação, anunciando que não são mais apenas fabricantes de veículos, mas fornecedores de serviços de mobilidade.
Eu concordo que os carros, assim como outros objetos criados pelo homem em tempos passados, seguirão tendo seus encantos. Faço um paralelo com os relógios, por exemplo, que têm muito em comum com os automóveis, no meu entender. Eu conseguiria relacionar várias semelhanças entre relógios e carros aqui, mas, para não me alongar demais, vou focar apenas no que interessa agora. Relógios são produtos que perderam completamente seu apelo racional, que é a marcação e a informação do tempo.
Atualmente, ninguém precisa usar um relógio no pulso, porque existem relógios nos computadores, nos celulares. No entanto, os shoppings estão cheios de lojas oferecendo relógios de todos os jeitos, estilos e preços. Relógios se tornaram acessórios de moda. E, no caso da alta relojoaria, joias para serem admiradas pelo design, pelos materiais e pelas técnicas usadas em sua construção, e pelas complicações, quando falamos de relógios mecânicos.
Da mesma forma, os carros vão continuar a ser a expressão da personalidade de quem os possui. E o jornalismo, assim como existem diversos títulos especializados em relógios, pelo mundo afora, seguirá informando e prestando serviços ao público interessado.