“Escravos do próprio sucesso”. É assim que pessoas que realizaram grandes feitos eventualmente se definem, explicando que o acerto do passado gera uma pressão imensa para que mantenham esse desempenho. De certo modo, é o que viveu a Ford ao lançar a Ford F-150 Lightning.
Por mais de quatro décadas, a F-150 (e sua família F-Series) é o veículo mais vendido do imenso mercado dos Estados Unidos. Naturalmente, as expectativas pela variante elétrica da picape grande seriam altas. Mas a fabricante assumiu a responsabilidade e fez dela seu segundo carro elétrico a ser lançado, logo após do (igualmente desafiador) Mustang Mach-E.
Já andamos na F-150 Lightning Platinum, a versão topo de linha, que se destaca não apenas pela mecânica, mas pelo interior luxuoso e tecnológico que ajudam a elevar seu preço aos US$ 93.990. Dessa vez, conhecemos a F-150 Lightning Pro, versão de entrada que sai por US$ 51.990 — com isenções fiscais, ela pode chegar a cerca de US$ 45.000. Mesmo básica, ela faz bonito: são dois motores, tração integral e nada menos que 458 cv e 107,1 kgfm.
Ainda que muito mais discreta, é na Lightning Pro que reside grande parte dos desafios da Ford: as versões de trabalho correspondem ao grosso das vendas da F-150 tradicional, e quem compra um veículo para trabalho é muito mais sensível ao preço. Tanto que a Chevrolet, por exemplo, tentou criar uma versão na casa dos US$ 40.000 para a Silverado EV, mas já anunciou que a missão deu errado.
Ao mesmo tempo, os atributos de um veículo elétrico são uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que a Ford F-150 Lightning Pro tem vantagens imbatíveis, ela também tem pontos fracos — além de curiosas semelhanças com modelos que conhecemos bem.
Design
Se a ousadia no Mustang Mach-E dividiu opiniões, na F-150 Lightning a Ford foi bem mais prudente na estética — medida inteligente, dado que o comprador de picapes tende a ser mais conservador nesse aspecto.
Assim, o estilo geral da F-150 a combustão é repetido na irmã elétrica. Destaca-se a dianteira, com faróis que fazem releitura leve da versão convencional, mantendo o par de projetores em leds em cada lado. As DRLs mantêm a forma de letra C, mas são mais grossas; na versão Platinum elas são unidas por uma barra horizontal na base do capô, mas, aqui, essa peça é substituída por plástico preto sem muito capricho. Esse plástico, inclusive, é o que substitui a grade frontal na Lightning Pro.
Não havia necessidade da Ford fazer um capô tão grande e quadrado, mas é uma escolha inevitável para manter o estilo icônico da sua picape. A ausência de um motor V8 sob esse volume, por outro lado, permitiu a instalação de um porta-malas de 400 litros na dianteira, com tomadas e vedação. Dá para levar toda a bagagem dos ocupantes e só usar a caçamba ocasionalmente.
De lado e por trás, a F-150 Lightning passa batido. A carroceria tem linhas praticamente idênticas, mas utiliza alumínio para aliviar seu peso; isso, entretanto, não é distinguível aos olhos. As diferenças sutis ficam no bocal de carregamento à frente da porta do motorista e nas lanternas traseiras, com formato mais tridimensional e máscara negra.
Interior
Como o nome indica, a versão Pro tem foco no trabalho, e sua cabine reflete isso. O painel é praticamente idêntico ao de uma F-150 convencional, com quadro de instrumentos digital de 12” e central multimídia do mesmo tamanho (uma pena que a elegante central vertical de 15,5” seja exclusiva das versões mais caras).
A preocupação em mantê-la parecida com picapes a gasolina é tanta, que a Ford manteve até a alavanca de câmbio, incluindo seu mecanismo de recolhimento. A decoração rústica de um modelo funcional está presente no ajuste manual dos bancos, que são revestidos em vinil nada delicado. O mesmo vale para os plásticos duros dos painéis de porta, por exemplo.
Mas, com 5,9 m de comprimento e entre-eixos maior que muito carro vendido no Brasil, o espaço é amplo. Principalmente atrás, a F-150 Lightning Pro parece um SUV de luxo em termos espaciais, gozando ainda do assoalho plano e área livre sob os assentos.
Alcance preocupa…
A versão básica tem o menor tamanho de baterias possível: 98 kWh líquidos, ainda assim impressionantes. É o suficiente para alimentar uma casa por semanas, e a Ford oferece um inversor que transforma a picape em uma usina de força que realmente cumpre essa função (veja mais no vídeo).
Carregando-a em corrente contínua a 135 kW, bastam 44 minutos para levá-la de 15% a 80% de carga. Em casa, por outro lado, são no mínimo 10h para ir de 15% a 100%, destacando o ponto fraco da caminhonete.
A despeito da energia abundante, com base no padrão norte-americano (EPA), a autonomia da F-150 Lightning Pro é de meros 384 km em ciclo combinado. Esse número, porém, não considera os 1.013 kg de capacidade de carga e 3,5 toneladas de capacidade de reboque do modelo.
Na verdade, sequer há métodos padronizados para que os compradores saibam mensurar a autonomia com base no que exigem da picape (evidenciando que as caminhonetes elétricas são ainda mais “extraterrestes” que os carros a bateria).
De todo modo, a Associação Automobilística Americana testou a versão Platinum com 635 kg e percebeu queda de 30% em relação ao alcance nominal. Uma conta básica, com progressão linear, sugeriria que a versão Pro, completamente carregada, teria autonomia na casa de 200 km. Um número frustante.
Não à toa, a segunda geração de elétricos da Ford focará em diminuir os tempos de recarga e melhorar a eficiência, incluindo medidas aerodinâmicas. “Estamos focados (na melhoria) em altas velocidades, de rodovias”, disse o vice-presidente de elétricos da fabricante, Darren Palmer, a QUATRO RODAS.
Performance empolga
Mas quando há carga, a F-150 Lightning é impressionante. O torque de 107,1 kgfm equivale a de muitos ônibus e, junto aos 458 cv, leva o veículo de aproximadamente 3 toneladas de 0 a 100 km/h em 5 s.
A aceleração é sempre farta e, sem perceber, a picape chega aos 160 km/h tranquilamente. Até por isso a Ford limitou a potência do motor elétrico nas versões com bateria menor, evitando panes secas causadas pela empolgação. E não que a F-150 V8 5.0 seja fraca, mas a resposta imediata dos motores elétricos é incomparável, transformando a experiência ao volante (com direção, diga-se, bem leve).
Outro aspecto positivo é a suspensão traseira, que, graças às características de um EV, dispensa feixe de molas e é independente. Os engenheiros da Azul Oval criaram um conjunto que utiliza molas helicoidais progressivas, braço semiarrastado e barra estabilizadora.
A traseira fica muito menos solta e o conforto atrás é equivalente ao de um SUV grande, mesmo em terrenos mais acidentados. Com um motor em cada eixo, a tração integral é permanente e a Lightning encara o fora-de-estrada com tranquilidade.
Em espírito, a Ford F-150 Lightning Pro mostra que as picapes elétricas, incluindo versões voltadas para o trabalho, têm tudo para elevar significativamente o nível de qualidade oferecido ao consumidor. Cabe às marcas, agora, resolverem os problemas de alcance e preço. Também por isso, espere novas gerações bem diferentes do que temos hoje.
Ficha Técnica – Ford F-150 Lightning Pro
Preço: US$ 51.990
Motor: 2 motores elétricos (diant. e tras.); 458 cv e 101,7 kgfm
Baterias: íons de lítio, 98 kWh
Carga: 11,3 kW (AC) / 150 kW (DC)
Câmbio: automático, 1 marcha + ré
Direção: elétrica
Suspensão: triângulos sobrepostos (diant.), braços semiarrastados (tras.)
Freios: disco ventilado nas quatro rodas
Pneus: 295/45 R18
Dimensões: comprimento, 591 cm; largura, 203 cm; altura, 200 cm; entre-eixos, 307 cm; peso, 2.990 kg; porta-malas, 400 l; caçamba, 1.495 l; capac. carga, 1.013 kg; capac. reboque, 3.500 kg
Desempenho: 0 a 100 k/h, 5 s; veloc. max. de 165 km/h; autonomia 384 km