Toyota Mirai é o carro a hidrogênio que quer aproveitar nosso etanol
Nosso país tem potencial para gerar hidrogênio de maneiras únicas. A Toyota sabe disso e trouxe o Mirai para ser "cobaia" de projeto que envolve o etanol
O tempo passa e coisas que, antes, eram ficção científica, vêm se tornando realidade. Estamos falando de fusão nuclear, a volta do homem à Lua, computadores quânticos e… carros a hidrogênio.
A promessa de um veículo que emita apenas água, tenha os prós de um carro elétrico (torque instantâneo e silêncio) e dispense seus maiores problemas (baterias e tempo de carregamento) é bem sedutora. Tanto que a Toyota desenvolve essa tecnologia desde 1992 e, há oito anos, lançou o primeiro carro a hidrogênio de série do mundo, o Mirai.
Ele já está na sua segunda geração, e já dirigimos ambas, mas o papel dele no Brasil agora é inédito. O uso do hidrogênio no mundo real vem mostrando suas dificuldades, e nosso país tem potencial para resolvê-las. Tanto que a japonesa, junto à Shell, Universidade de São Paulos e outras empresas, está trabalhando no primeiro posto do tipo no país, na Cidade Universitária da USP.
Vantagens do hidrogênio
Ao contrário das reservas finitas de petróleos e elementos que formam as baterias automotivas ou do espaço limitado para o plantio de cana-de-açúcar, o hidrogênio é simplesmente o elemento químico mais abundante que existe; cerca de 75% de todo o Universo é feito dele.
Ele também é o elemento menos denso de todos, e meros 5,65 kg do gás H2, comprimido a altíssima pressão em três tanques, bastam para que o Toyota Mirai rode cerca de 650 km normalmente — em 2021 a Toyota conseguiu rodar 1.360 km com apenas uma carga, em condições especiais.
Para que um veículo elétrico a baterias (um BEV) faça os mesmos 650 km, só as baterias pesariam cerca de 1 tonelada. O motor precisa ser mais potente para dar conta disso, o veículo deve ser maior e o tempo de carregamento também aumenta; ao contrário do Mirai, que é abastecidos em postos bem parecidos com os que conhecemos.
Em todos os locais onde o sedã de 4,9 m de comprimento é vendido, há alguns desses postos. Basta chegar, plugar a mangueira e encher o tanque, com cada quilo de H2 custando entre US$ 10 e US$ 20. Para incentivar compradores, porém, a Toyota dá crédito de até US$ 15.000 para ser gasto no abastecimento e até diárias grátis de carros a combustão, caso o dono queira viajar para um lugar sem H2 veicular.
Dado que o gás hidrogênio é altamente inflamável, os tanques usam tecnologias de foguetes espaciais, como um enrolamento de fibra de carbono em altíssima tensão ao redor dos cilindros. A cabine é isolada para evitar que o gás penetre nela e, caso necessário, o carro consegue expelir toda a carga imediatamente.
A versão XLE, das fotos, é a mais barata e parte de aproximadamente US$ 50.000. Incentivos fiscais, porém, podem derrubar esse preço para US$ 37.000. Durante a pandemia, uma promoção da Toyota teve unidades do Mirai vendidas a meros US$ 18.000. A ideia aqui não é lucrar, mas testar uma tecnologia no mundo real.
Mas também vem dos cilindros o maior defeito de ergonomia do Mirai: seu túnel central é gigantesco, inviabilizando que algum ocupante viaje no banco de trás. Eles também roubam espaço do porta-malas e impedem console central vazado, que está na moda entre os BEVs.
Como funciona um carro a hidrogênio?
A ideia de veículos movidos a H2 vem sendo testada há décadas, incluindo inventores aventureiros. Esse é o caso do engenheiro Jean Pierre Chambrin, morador do Brasil que, em 1976, criou um suposto carro movido a água.
Falaremos mais dele adiante, mas a última etapa do seu mecanismo consistia em um motor a combustão adaptado para queimar o gás. A própria Toyota tem projetos do tipo, mas eles são menos eficientes e servem para que o ronco dos cilindros e bielas siga vivo em um futuro sem gasolina.
Hoje em dia, a ideia é usar um célula de combustível, que, no caso do Mirai, correspondem a 330 pilhas que funcionam juntas, em arranjo complexo. De forma simplificada, uma das placas (eletrodos) dessa pilha recebe o gás hidrogênio que vem dos tanques.
A outra, recebe gás oxigênio que entra pela grade frontal na forma de ar atmosféricos. Sob capô, poeiras e outras impurezas são eliminadas e um filtro especial separa o O2 de outros gases. Com hidrogênio em uma “ponta” e oxigênio na outra, o recheio (eletrólito) desse biscoito “suga” elétrons de uma bolacha a outra, criando corrente elétrica, que alimenta um motor traseiro.
Logo, o Mirai também é um carro elétrico. Mas, ao contrário dos BEVs, ele é um veículo elétrico a célula de combustível (FCEV), contando inclusive com uma pequena bateria que serve de “tampão”.
Com 184 cv e 41,5 kgfm, o motor elétrico do Mirai tem características como o funcionamento silencioso e torque instantâneo, levando o veículo de 0 a 100 km/h em cerca de 9,5 s. Em movimento, ele é indistinguível de outros EVs, assim como seu interior é praticamente idêntico ao de um carro convencional. O design da primeira geração do carro era incomum, mas agora o Mirai está mais mundano e há até certa semelhança com o popular Toyota Camry.
O carro a água é uma lenda?
Sim e não. De fato, Jean Pierre Chambrin criou um carro que gerava e queimava hidrogênio a partir do etanol, utilizando o processo chamado de reforma a vapor. Até o presidente Ernesto Geisel foi conferir a invenção, numa época em que o Proálcool estava nascendo e a Ditadura estava desesperada para diminuir as importações de petróleo, que vivia seu primeiro choque de preços e causava um rombo na balança comercial do país.
O arranjo à moda da gambiarra, entretanto, era muito pouco eficiente, e os órgão públicos só descobriram isso após firmarem contratos com o engenheiro. Chambrin jamais conseguiu números satisfatórios em testes auditados e o carro a água morreu ali, antes de ressuscitar à medida que a engenharia evoluía no mundo. Para justificar seu fracasso, o inventor afirmou ter sido boicotado e a lenda urbana se propagou até os dias atuais.
A Nissan chegou a testar algo semelhante, mas sofreu com os mesmos problemas dos anos 1970: baixa eficiência e alto custo do mecanismo, que tornaria carros do tipo proibitivos. Mas a reforma vapor segue o principal método de produção de hidrogênio combustível, junto da eletrólise.
No primeiro caso, usa-se, normalmente, gás natural e vapores a altas temperaturas, num processo poluente e, mesmo em escala industrial, de pouco rendimento. No segundo, o H2 é separado da água com o uso de eletricidade e, se essa energia elétrica vem de fontes renováveis, temos aí o hidrogênio verde, com grande potencial em nosso país, farto de sol e ventos.
Mas a própria reforma a vapor pode ter uma solução à brasileira, revendo o conceito que Chambrin e a Nissan tentaram. O projeto da USP, Raízen, Hytron, Senai CETIQT e Toyota quer criar postos de reforma com etanol, ao invés de embutir esse mecanismo em cada carro.
De cara, o custo já é diluído. Além disso, se sabe há muito tempo que, com etanol no lugar do gás natural, os vapores que fecham a equação química precisam de menos temperatura, aumentando a eficiência do processo. Por fim, a captura de carbono dos canaviais compensaria o dióxido de carbono emitido no processo.
O primeiro posto do tipo deve ser inaugurado no ano que vem, e o campus da USP no Butantã terá ônibus movidos a H2 para, assim como o Mirai, testar a viabilidade da tecnologia.
Qual tipo de combustível é melhor?
Depende. Apesar de todas as vantagens do hidrogênio, não é só a dificuldade na sua produção que deve ser superada, mas a própria eficiência no ciclo chamado “poço à roda”, que leva em conta desde a geração de energia até a movimentação do carro em si.
A conta varia conforme o local e a forma de geração do hidrogênio, mas etapas como a produção, transporte (do gás ou da cana) e a compressão do H2 em altíssimas pressões gastam muito da energia inicial. A célula de combustível também tem perdas significativas e, no fim das contas, a cada 100 kWh que saem de uma usina hidrelétrica brasileira rumo ao Mirai, o que de fato chegaria às rodas seria algo em torno de 20 kWh.
Toyota Mirai: galeria de fotos completa
Esses processos inexistem em um carro elétrico convencional, e da usina à tomada de carregamento, as únicas perdas vêm da dissipação da eletricidade pelos cabos e transformadores. Segundo a Aneel, a perda média era de 7,6% em 2020, mas um cenário cada vez mais comum, na qual o dono do carro tem placas solares em casa, por exemplo, já melhora essa conta.
Ao final, um cenário bem eficiente de geração e carregamento e propulsão do carro, pode atingir eficiência de até 90%. É muito mais do que seria possível com hidrogênio.
O hidrogênio perdeu, então?
Não, e basta lembrar que, em breve, caminhões a diesel irão acabar. E num mundo de e-commerce e frete cada vez maiores, é simplesmente inviável abrir mão das características de transporte dos veículos de carga atuais — o que vem causando pesadelos às fabricantes.
A Volvo é uma que desenvolveu uma variante elétrica da famosa linha FH, que domina as estradas brasileiras, e logo ficou claro o tamanho do problema. Para dar conta de movimentar a carga com um alcance aceitável, sua bateria é gigantesca. Isso, ironicamente, rouba peso que seria aproveitado por mais produtos.
No fim das contas, o FH elétrico “puxa” no máximo 44 toneladas, enquanto o FH 540 vendido no Brasil supera as 70 t. A autonomia é rudimentar, e no melhor dos casos é de meros 300 km (com o veículo carregado é bem menos).
Por fim, para carregar a bateria leva-se 2h30, mas utilizando carregadores de corrente contínua com potência de absurdos 250 kW. Para instalar um desse no Brasil, o custo facilmente supera os R$ 500.000, e um frotista precisaria de vários dele para não ter vários caminhões parados ao mesmo tempo.
Avaliação da Toyota sobre o estado de diferentes tecnologias no Brasil
TECNOLOGIA | INFRAESTRUTURA | PREÇO |
Híbrido flex | Pronta | Médio |
Híbridos plug-in | Acessível | Médio/Alto |
Baterias | Insuficiente | Alto |
Hidrogênio | Inexistente | Muito alto |
A Tesla também aposta no Semi, que, como praxe, tem números contestáveis e muitas promessas ainda não cumpridas. A fabricante afirma que ele traciona até 37 toneladas, que é pouco. Sua autonomia declarada é de bons 800 km, mas, por conta disso, sua bateria teria cerca de 900 kWh.
Para carregá-lo a 250 kW, já seriam mais de 7h. A Tesla diz que lançará um carregador de estúpidos 1.000 kWh (ou 1 MWh), mas sequer sabemos se isso é viável comercialmente, dada a potência absurda que seria exigida da rede e o custo astronômico de instalação. E é por conta de fatores como esses que o segmento comercial é onde o hidrogênio deve dominar. Por mais que o H2 seja menos eficiente, as baterias tendem a se mostrar inviáveis em termos de praticidade.
Assim, a própria Volvo vem testando seu caminhão a célula de combustível. Marcas como Peugeot e Citroën apostam em furgões do tipo, com os novos Partner e Jumpy já oferecendo essa variante e a Toyota já se uniu à Isuzu para lançar caminhões menores a hidrogênio.
No fim da contas, o futuro não é elétrico, a hidrogênio ou a gasolina sintética; ele é sem emissões de carbono, e vale aproveitar todas as alternativas possíveis conforme o cenário. Mas é só lançando produtos no mundo real que alguns desafios aparecem, e esse é o trabalho pioneiro que o Mirai vem fazendo desde seu lançamento; no Brasil, é hora dele cumprir uma nova (e promissora) missão.