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Toyota Mirai é o carro a hidrogênio que quer aproveitar nosso etanol

Nosso país tem potencial para gerar hidrogênio de maneiras únicas. A Toyota sabe disso e trouxe o Mirai para ser "cobaia" de projeto que envolve o etanol

Por Eduardo Passos
Atualizado em 9 nov 2023, 17h01 - Publicado em 9 nov 2023, 16h59
O único Toyota Mirai registrado no Brasil foi testado por Quatro Rodas
O Mirai foi trazido para testes pela própria Toyota, então não espere ver um seminovo à venda (Fernando Pires/Quatro Rodas)
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O tempo passa e coisas que, antes, eram ficção científica, vêm se tornando realidade. Estamos falando de fusão nuclear, a volta do homem à Lua, computadores quânticos e… carros a hidrogênio.

A promessa de um veículo que emita apenas água, tenha os prós de um carro elétrico (torque instantâneo e silêncio) e dispense seus maiores problemas (baterias e tempo de carregamento) é bem sedutora. Tanto que a Toyota desenvolve essa tecnologia desde 1992 e, há oito anos, lançou o primeiro carro a hidrogênio de série do mundo, o Mirai.

Ele já está na sua segunda geração, e já dirigimos ambas, mas o papel dele no Brasil agora é inédito. O uso do hidrogênio no mundo real vem mostrando suas dificuldades, e nosso país tem potencial para resolvê-las. Tanto que a japonesa, junto à Shell, Universidade de São Paulos e outras empresas, está trabalhando no primeiro posto do tipo no país, na Cidade Universitária da USP.

Toyota Mirai
Ele está em sua segunda geração e é pouco maior do que um Camry (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Vantagens do hidrogênio

Ao contrário das reservas finitas de petróleos e elementos que formam as baterias automotivas ou do espaço limitado para o plantio de cana-de-açúcar, o hidrogênio é simplesmente o elemento químico mais abundante que existe; cerca de 75% de todo o Universo é feito dele.

Ele também é o elemento menos denso de todos, e meros 5,65 kg do gás H2, comprimido a altíssima pressão em três tanques, bastam para que o Toyota Mirai rode cerca de 650 km normalmente — em 2021 a Toyota conseguiu rodar 1.360 km com apenas uma carga, em condições especiais.

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Ao contrário das baterias, hidrogênio permite rodar longas distâncias de maneira prática
Ao contrário das baterias, hidrogênio permite rodar distâncias maiores que as de um carro a diesel ou gasolina (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Para que um veículo elétrico a baterias (um BEV) faça os mesmos 650 km, só as baterias pesariam cerca de 1 tonelada. O motor precisa ser mais potente para dar conta disso, o veículo deve ser maior e o tempo de carregamento também aumenta; ao contrário do Mirai, que é abastecidos em postos bem parecidos com os que conhecemos.

Posto de recarga de hidrogênio
Postos de hidrogênio são praticamente idênticos aos convencionais (Divulgação/Shell)

Em todos os locais onde o sedã de 4,9 m de comprimento é vendido, há alguns desses postos. Basta chegar, plugar a mangueira e encher o tanque, com cada quilo de H2 custando entre US$ 10 e US$ 20. Para incentivar compradores, porém, a Toyota dá crédito de até US$ 15.000 para ser gasto no abastecimento e até diárias grátis de carros a combustão, caso o dono queira viajar para um lugar sem H2 veicular.

Toyota Mirai, carro a hidrogênio testado no Brasil por QUATRO RODAS (50)
Bocal onde vai a mangueira que abastece o Mirai (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Dado que o gás hidrogênio é altamente inflamável, os tanques usam tecnologias de foguetes espaciais, como um enrolamento de fibra de carbono em altíssima tensão ao redor dos cilindros. A cabine é isolada para evitar que o gás penetre nela e, caso necessário, o carro consegue expelir toda a carga imediatamente.

Cilindros do Mirai (em amarelo) são envoltos em fibra de carbono e fios especiais que garantem proteção em batidas. Teste do Euro NCAP não teve qualquer problema e o sedã recebeu cinco estrelas
Cilindros do Mirai (em amarelo) são envoltos em fibra de carbono e fios especiais que garantem proteção em batidas. Teste do Euro NCAP não teve qualquer problema e o sedã recebeu cinco estrelas (Divulgação/Toyota)
Quanto custa o Mirai?

A versão XLE, das fotos, é a mais barata e parte de aproximadamente US$ 50.000. Incentivos fiscais, porém, podem derrubar esse preço para US$ 37.000. Durante a pandemia, uma promoção da Toyota teve unidades do Mirai vendidas a meros US$ 18.000. A ideia aqui não é lucrar, mas testar uma tecnologia no mundo real.

Toyota Mirai

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Mas também vem dos cilindros o maior defeito de ergonomia do Mirai: seu túnel central é gigantesco, inviabilizando que algum ocupante viaje no banco de trás. Eles também roubam espaço do porta-malas e impedem console central vazado, que está na moda entre os BEVs.

Toyota Mirai, carro a hidrogênio testado no Brasil por QUATRO RODAS (25)
Cilindro rouba todo o espaço central das pernas na segunda fileira (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Como funciona um carro a hidrogênio?

A ideia de veículos movidos a H2 vem sendo testada há décadas, incluindo inventores aventureiros. Esse é o caso do engenheiro Jean Pierre Chambrin, morador do Brasil que, em 1976, criou um suposto carro movido a água.

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Botão ao lado do volante esvazia o reservatório de água do carro (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Falaremos mais dele adiante, mas a última etapa do seu mecanismo consistia em um motor a combustão adaptado para queimar o gás. A própria Toyota tem projetos do tipo, mas eles são menos eficientes e servem para que o ronco dos cilindros e bielas siga vivo em um futuro sem gasolina.

Motor a Hidrogenio
Motor V8 a hidrogênio feito em parceria da Toyota com a Yamaha (Divulgação/Toyota)

Hoje em dia, a ideia é usar um célula de combustível, que, no caso do Mirai, correspondem a 330 pilhas que funcionam juntas, em arranjo complexo. De forma simplificada, uma das placas (eletrodos) dessa pilha recebe o gás hidrogênio que vem dos tanques.

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Sob o capô, capa plástica cobre a célula de combustível (Fernando Pires/Quatro Rodas)

A outra, recebe gás oxigênio que entra pela grade frontal na forma de ar atmosféricos. Sob capô, poeiras e outras impurezas são eliminadas e um filtro especial separa o O2 de outros gases. Com hidrogênio em uma “ponta” e oxigênio na outra, o recheio (eletrólito) desse biscoito “suga” elétrons de uma bolacha a outra, criando corrente elétrica, que alimenta um motor traseiro.

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Toyota Mirai, carro a hidrogênio testado no Brasil por QUATRO RODAS (34)
Toyota já trabalha nesse mecanismo há 31 anos (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Logo, o Mirai também é um carro elétrico. Mas, ao contrário dos BEVs, ele é um veículo elétrico a célula de combustível (FCEV), contando inclusive com uma pequena bateria que serve de “tampão”.

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Consumo de um carro a hidrogênio é medido em km/kg (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Com 184 cv e 41,5 kgfm, o motor elétrico do Mirai tem características como o funcionamento silencioso e torque instantâneo, levando o veículo de 0 a 100 km/h em cerca de 9,5 s. Em movimento, ele é indistinguível de outros EVs, assim como seu interior é praticamente idêntico ao de um carro convencional. O design da primeira geração do carro era incomum, mas agora o Mirai está mais mundano e há até certa semelhança com o popular Toyota Camry.

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Grade frontal coleta o ar de onde será extraído o gás oxigênio puro que completa a reação (Fernando Pires/Quatro Rodas)

O carro a água é uma lenda?

Sim e não. De fato, Jean Pierre Chambrin criou um carro que gerava e queimava hidrogênio a partir do etanol, utilizando o processo chamado de reforma a vapor. Até o presidente Ernesto Geisel foi conferir a invenção, numa época em que o Proálcool estava nascendo e a Ditadura estava desesperada para diminuir as importações de petróleo, que vivia seu primeiro choque de preços e causava um rombo na balança comercial do país.

Jean Pierre Chambrin
Além de inviável, dispositivo de Chambrin ainda precisava de álcool para funcionar (Reprodução/Internet)

O arranjo à moda da gambiarra, entretanto, era muito pouco eficiente, e os órgão públicos só descobriram isso após firmarem contratos com o engenheiro. Chambrin jamais conseguiu números satisfatórios em testes auditados e o carro a água morreu ali, antes de ressuscitar à medida que a engenharia evoluía no mundo. Para justificar seu fracasso, o inventor afirmou ter sido boicotado e a lenda urbana se propagou até os dias atuais.

A Nissan chegou a testar algo semelhante, mas sofreu com os mesmos problemas dos anos 1970: baixa eficiência e alto custo do mecanismo, que tornaria carros do tipo proibitivos. Mas a reforma vapor segue o principal método de produção de hidrogênio combustível, junto da eletrólise.

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protótipo da Nissan que utiliza a tecnologia SOFC e etanol
Nissan tentou incrementar ideia do engenheiro, mas também não teve sucesso (Divulgação/Nissan)

No primeiro caso, usa-se, normalmente, gás natural e vapores a altas temperaturas, num processo poluente e, mesmo em escala industrial, de pouco rendimento. No segundo, o H2 é separado da água com o uso de eletricidade e, se essa energia elétrica vem de fontes renováveis, temos aí o hidrogênio verde, com grande potencial em nosso país, farto de sol e ventos.

ExxonMobil – Chicago, IL 08-12-2014 012
Reforma a vapor tradicional polui e é pouco eficiente (Richard Hurd/Quatro Rodas)

Mas a própria reforma a vapor pode ter uma solução à brasileira, revendo o conceito que Chambrin e a Nissan tentaram. O projeto da USP, Raízen, Hytron, Senai CETIQT e Toyota quer criar postos de reforma com etanol, ao invés de embutir esse mecanismo em cada carro.

Planta reformador
Posto experimental na USP deve produzir 4,5 kg/hora de gás hidrogênio a partir do etanol (Divulgação/Shell)

De cara, o custo já é diluído. Além disso, se sabe há muito tempo que, com etanol no lugar do gás natural, os vapores que fecham a equação química precisam de menos temperatura, aumentando a eficiência do processo. Por fim, a captura de carbono dos canaviais compensaria o dióxido de carbono emitido no processo.

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Eletrólise consome muita energia elétrica. Mas e se ela vier de fontes renováveis? (Engaliza/Wikimedia)

O primeiro posto do tipo deve ser inaugurado no ano que vem, e o campus da USP no Butantã terá ônibus movidos a H2 para, assim como o Mirai, testar a viabilidade da tecnologia.

Qual tipo de combustível é melhor?

Depende. Apesar de todas as vantagens do hidrogênio, não é só a dificuldade na sua produção que deve ser superada, mas a própria eficiência no ciclo chamado “poço à roda”, que leva em conta desde a geração de energia até a movimentação do carro em si.

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Toyota Mirai, carro a hidrogênio testado no Brasil por QUATRO RODAS (6)
Para movimentar um carro a hidrogênio, muita energia se perde no caminho (Fernando Pires/Quatro Rodas)

A conta varia conforme o local e a forma de geração do hidrogênio, mas etapas como a produção, transporte (do gás ou da cana) e a compressão do H2 em altíssimas pressões gastam muito da energia inicial. A célula de combustível também tem perdas significativas e, no fim das contas, a cada 100 kWh que saem de uma usina hidrelétrica brasileira rumo ao Mirai, o que de fato chegaria às rodas seria algo em torno de 20 kWh.

Toyota Mirai: galeria de fotos completa

Esses processos inexistem em um carro elétrico convencional, e da usina à tomada de carregamento, as únicas perdas vêm da dissipação da eletricidade pelos cabos e transformadores. Segundo a Aneel, a perda média era de 7,6% em 2020, mas um cenário cada vez mais comum, na qual o dono do carro tem placas solares em casa, por exemplo, já melhora essa conta.

Ao final, um cenário bem eficiente de geração e carregamento e propulsão do carro, pode atingir eficiência de até 90%. É muito mais do que seria possível com hidrogênio.

O hidrogênio perdeu, então?

Não, e basta lembrar que, em breve, caminhões a diesel irão acabar. E num mundo de e-commerce e frete cada vez maiores, é simplesmente inviável abrir mão das características de transporte dos veículos de carga atuais — o que vem causando pesadelos às fabricantes.

Volvo FM Electric brasil
Já até flagramos um caminhão elétrico da Volvo em testes no Brasil, mas ele sofreria com as distâncias continentais (Henrique Rodriguez/Quatro Rodas)

A Volvo é uma que desenvolveu uma variante elétrica da famosa linha FH, que domina as estradas brasileiras, e logo ficou claro o tamanho do problema. Para dar conta de movimentar a carga com um alcance aceitável, sua bateria é gigantesca. Isso, ironicamente, rouba peso que seria aproveitado por mais produtos.

No fim das contas, o FH elétrico “puxa” no máximo 44 toneladas, enquanto o FH 540 vendido no Brasil supera as 70 t. A autonomia é rudimentar, e no melhor dos casos é de meros 300 km (com o veículo carregado é bem menos).

Uma das promessas da Tesla é a capacidade do Semi subir ladeiras à velocidade máxima da estrada
Tesla Semi promete muito, mas até agora cumpriu pouco (e em testes pouco auditados) (Divulgação/Tesla)

Por fim, para carregar a bateria leva-se 2h30, mas utilizando carregadores de corrente contínua com potência de absurdos 250 kW. Para instalar um desse no Brasil, o custo facilmente supera os R$ 500.000, e um frotista precisaria de vários dele para não ter vários caminhões parados ao mesmo tempo.

Avaliação da Toyota sobre o estado de diferentes tecnologias no Brasil

TECNOLOGIA INFRAESTRUTURA PREÇO
Híbrido flex Pronta Médio
Híbridos plug-in Acessível Médio/Alto
Baterias Insuficiente Alto
Hidrogênio Inexistente Muito alto

A Tesla também aposta no Semi, que, como praxe, tem números contestáveis e muitas promessas ainda não cumpridas. A fabricante afirma que ele traciona até 37 toneladas, que é pouco. Sua autonomia declarada é de bons 800 km, mas, por conta disso, sua bateria teria cerca de 900 kWh.

Gama completa de veículos comerciais da Citroën.
Citroën e Peugeot vêm apostando no veículos comerciais a hidrogênio (Divulgação/Citroën)

Para carregá-lo a 250 kW, já seriam mais de 7h. A Tesla diz que lançará um carregador de estúpidos 1.000 kWh (ou 1 MWh), mas sequer sabemos se isso é viável comercialmente, dada a potência absurda que seria exigida da rede e o custo astronômico de instalação. E é por conta de fatores como esses que o segmento comercial é onde o hidrogênio deve dominar. Por mais que o H2 seja menos eficiente, as baterias tendem a se mostrar inviáveis em termos de praticidade.

Toyota Mirai
No fim, há várias rotas para o futuro dos veículos (Fernando Pires/Quatro Rodas)

Assim, a própria Volvo vem testando seu caminhão a célula de combustível. Marcas como Peugeot e Citroën apostam em furgões do tipo, com os novos Partner e Jumpy já oferecendo essa variante e a Toyota já se uniu à Isuzu para lançar caminhões menores a hidrogênio.

No fim da contas, o futuro não é elétrico, a hidrogênio ou a gasolina sintética; ele é sem emissões de carbono, e vale aproveitar todas as alternativas possíveis conforme o cenário. Mas é só lançando produtos no mundo real que alguns desafios aparecem, e esse é o trabalho pioneiro que o Mirai vem fazendo desde seu lançamento; no Brasil, é hora dele cumprir uma nova (e promissora) missão.

 

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