Fundada em 2008, a Azul virou a terceira maior companhia aérea do Brasil seguindo uma receita diferente de Gol e Latam. O foco na Ponte Aérea e nos Boeing e Airbus com seis assentos por fileira deu lugar, por exemplo, à base no então esquecido aeroporto de Viracopos, em Campinas, e frota de aeronaves Embraer, um pouco menores.
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Em seguida, ocorreu a fusão com a empresa regional Trip, ampliando a presença da Azul em cidades de médio porte e alheias à infraestrutura rodoviária, como as do interior do Amazonas e Pará.
Hoje já voando aviões widebodies (aqueles maiores, com dois corredores) para Flórida e Portugal, a companhia retornou à sua vocação exploratória e adquiriu a TwoFlex — ex-parceira da Gol e especializada em voar para cidades pequenas com aviões monomotores de nove lugares.
A ideia era usar a experiência dos tripulantes e os pequenos Cessna 208 Grand Caravan da finada companhia para chegar em locais ainda menores, que nem mesmo os turboélice ATR 72-600 (então os menores da frota Azul) poderiam atingir.
Disso nasceu a subsidiária Azul Conecta, que nesse verão está voando para destinos antes só alcançáveis via carro ou voos fretados. A ideia é oferecer uma opção aérea acessível para essas cidades, driblando estradas e cobrando o mesmo que uma passagem aérea qualquer.
A fim de experimentar essas rotas, QUATRO RODAS embarcou no monomotor que liga o Aeroporto Internacional de Belo Horizonte, em Confins, à turística Búzios, no Rio de Janeiro. Adianto: essa operação peculiar é ágil e divertida.
Check-in e embarque
Com voo marcado para 9h50, a ideia era percorrer todos os trâmites que um passageiro comum da Azul Conecta teria. Como não há distinção entre subsidiária e matriz, o check-in e despacho de bagagens é feito no mesmo balcão que destinos como São Paulo e Rio de Janeiro.
A franquia de bagagens é a mesma de qualquer voo: 23 kg. O preço da passagem também não foge da normalidade e, às vésperas do embarque, o bilhete para Búzios custava R$ 230. O mesmo trecho via ônibus, em comparação, leva 13h e não sai por menos de R$ 120.
Um pequeno problema só ocorreu quando o tíquete foi identificado pelas catracas do aeroporto como voo internacional, sugerindo que o repórter se dirigisse ao terminal adequado. Em poucos segundos, porém, a agente aeroportuária solucionou o problema sem maiores sustos. “Toda sexta-feira esse voo é identificado como internacional, não sei o porquê”, relatou, sem pistas do mistério.
Como em qualquer aeroporto grande, a sala de embarque de Confins é ampla e conta com dois tipos de acesso às aeronaves. O mais famoso é feito via pontes de embarque (ou fingers) retráteis, que ligam a sala direto à cabine.
Já aeronaves menores, como o Grand Caravan, são incompatíveis com as pontes por conta de sua altura. Então é feito o embarque remoto, no qual o passageiro caminha pelo pátio ou toma um ônibus até o aparelho – o mesmo que ocorre quando não há fingers disponíveis para os Boeing e Airbus, por exemplo.
Talvez por isso Alessandra Arantes, de 51 anos, não tenha notado nada diferente quando se dirigiu ao portão do voo AD 5101. A professora viajava a Búzios para encontrar sua filha e lia relaxadamente quando a agente de solo da Azul anunciou: “pessoal, todos os passageiros já estão cá. Peço que mantenham os documentos em mãos”.
Ao questionar os poucos viajantes, Arantes descobriu o que lhe aguardava: um dos monomotores mais populares da história, com cerca de 3 mil unidades vendidas e 25 milhões de horas de voo completadas.
“É um absurdo não terem avisado antes. Eu tenho medo até mesmo de aviões maiores”, protestou, sem perceber que as informações da aeronave constavam desde o início na reserva. A passageira cogitou embarcar num voo à tarde para Cabo Frio, feito pelo Embraer 195. A taxa de remarcação e as dúvidas de como percorrer os 30 km até seu destino final, entretanto, fizeram-na encarar seu desafio pessoal.
O avião
O trajeto até o pátio de aeronaves foi feito por uma Fiat Ducato da própria Azul. Em cerca de cinco minutos, chegamos ao Cessna 208B Grand Caravan, matrícula PT-MEY, que nos levaria ao Rio de Janeiro em pouco mais de noventa minutos.
Introduzido em 1986, esse modelo começou sua trajetória como um cargueiro, feito quase sob medida para a FedEx, que pretendia ampliar seu serviço de entregas expressas a cidades menores dos EUA.
Com boa fama, o avião virou sucesso de vendas e, fabricado até hoje, já preencheu o ‘bingo’ de funções: carga, passageiros, táxi aéreo e militar. Na Força Aérea Brasileira, por exemplo, foi rebatizado C-98, e ocupa papel logístico crucial.
O PT-MEY, especificamente, está prestes a completar 25 anos de uso, tendo sido entregue novo à Brasil Central Linhas Aéreas, posteriormente incorporada à TAM. Desde 2006, o “Echo Yankee”, como apelidado pelos pilotos, servia à TwoFlex antes de entrar para a frota da Azul.
É importante lembrar que padrões automotivos não se aplicam à aeronáutica e vice-versa. No caso dos aviões, a quilometragem dá lugar aos ciclos que, salvo exceções, correspondem a um pouso e uma decolagem. Já a idade é mais bem representada pelas horas de voo.
Além de manutenção imprevistas, há quatro tipos de revisões periódicas que devem ser feitas nos aviões, cada uma delas mais intensa que a anterior.
A principal delas é o temido (e caríssimo) overhaul, que desmonta o avião como QUATRO RODAS faz no Longa Duração, porém inspecionando e restaurando cada mínimo desgaste nas peças.
Feito a cada meia década, em média, o overhaul é tão extenso que, em aviões maiores, pode levar mais de um mês para ser concluído. A tarefa é tão bem feita que as aeronaves são tidas quase como novas após o processo. Não à toa, o preço de uma unidade costuma variar mais pela proximidade do próximo overhaul do que pela idade em si.
Decolagem
Enquanto desembarcamos da van, a tripulação inspecionava o carregamento dos porões de carga e recepcionava os passageiros. Ao contrário de uma equipe grande, porém, havia apenas o comandante Sérgio Anacleto e a primeiro-oficial (como são chamados os copilotos) Juciane Bernardi.
Descontraído, o aviador perguntava se os passageiros tinham ido ao banheiro, inexistente no Caravan. Com os viajantes embarcados, Anacleto se dirigiu à cabine via porta lateral, enquanto Bernardi veio dos fundos, distribuindo água aos passageiros.
O serviço de bordo completo segue interrompido por questões sanitárias ligadas à covid-19.
O tamanho da aeronave e sua cabine, de apenas 1,3 m de altura, causam estranhamento, mas a principal peculiaridade do monomotor é a ausência de separação entre tripulantes e passageiros, como em um automóvel.
A falta de privacidade não incomoda Sérgio, pelo contrário. “Os passageiros muitas vezes têm medo do que não conhecem. Estando expostos, podemos transmitir confiança através da nossa tranquilidade na operação. Se o passageiro nos vê calmos, ele tende a não ficar nervoso”, explica.
Essa calma é predominante desde o acionamento dos motores, quando ainda é possível ouvir o mineiro e a gaúcha conversando calmamente enquanto ajustam seus instrumentos.
Em instantes, o PT-MEY está pronto para decolar, em seguida a um Boeing 737 da Gol. A pista de Confins, dimensionada para os maiores aviões do mundo, dá e sobra para o voo, que começa a partir dos 144 km/h —rapidamente atingidos quando se aplica mais de 600 cv de potência a um veículo tão pesado quanto uma picape.
Ida para Búzios
Com o motor operando plenamente, fica fácil perceber que o principal problema do Caravan é o barulho, consideravelmente maior que nos outros aviões comerciais. Isso ocorre porque não há pressurização da cabine, permitindo que os ruídos externos entrem com mais intensidade.
Outra diferença em voo são os assentos, sem encosto de cabeça. Na configuração 1-2 (um assento, corredor, dois assentos) usada pela Azul, os bancos duplos também são inteiriços, sem apoio para braço.
Esses fatores, entretanto, não incomodam nas rotas curtas que a Azul Conecta faz. Além disso, o espaço para as pernas — muito mais importante para passageiros maiores — é generoso, ganhando de ‘lavada’ dos apertados jatos.
Ainda que a aparência dos assentos lembre a saudosa Kombi, o Caravan, nos parâmetro aeronáuticos, está mais para uma Mercedes-Benz Sprinter, se revezando entre cargas e passageiros, inclusive com diferentes níveis de conforto (o Caravan também possui luxuosas variantes executivas).
Os modelos que saem atualmente da fábrica da Cessna, no Kansas, têm estética levemente renovada, principalmente no interior. Mas se trata, em essência, do mesmo projeto de três décadas atrás.
A pressurização é dispensável porque o Caravan voa baixo, a cerca de 3.000 m. Isso também permite janelas bem maiores, que tornam o voo uma surpresa visual por si.
Na rota, é possível identificar cidades, pontos naturais e rodovias de maneira detalhada. O passeio pelas camadas mais baixas da atmosfera também evita turbulências, completamente inexistentes no caminho.
Pouso
Passada uma hora, o litoral do Rio de Janeiro pode ser visto no para-brisa da aeronave. Em instantes, os pilotos conferem se todos estão com cintos afivelados e chegam a Búzios.
Por lá não existem instrumentos de navegação, e todo o pouso é feito seguindo regras visuais. Essa situação é constante nas rotas que a Azul opera com o Caravan, e por isso há preferência pelos voos diurnos.
Entretanto, sempre que os rígidos padrões de segurança não podem ser cumpridos é necessário rumar para um aeroporto alternativo, escolhido antes da decolagem. “Acontece de vez em quando”, ressalta Anacleto.
Nos aeroportos grandes, o Caravan é capaz de usufruir dos mais avançados instrumentos de navegação. O pouso em BH inclusive seria feito via ILS (do inglês Instrument Landing System) — sistema capaz até mesmo de pousar a aeronave de maneira completamente autônoma e com visibilidade nula.
Esse não era o caso de Búzios, que contava com céu de brigadeiro. O pouso foi muito suave e logo o desembarque foi feito. No reduzido terminal já estavam os passageiros do trecho de volta, que partiria em instantes.
Foi o tempo dos pilotos irem ao banheiro e já reiniciarem todo a burocracia de despachar e aprovar o plano de voo. Partida liberada, os novos oito passageiros chegavam, e os olhares curiosos recomeçavam. “Vocês foram ao banheiro?”, perguntou Anacleto enquanto Berardi fazia os procedimentos de checagem. E começou tudo de novo, rumo à capital mineira.
O voo de volta foi praticamente igual ao anterior. O “trator dos ares”, como é chamado carinhosamente, ainda mostrou seus dotes utilizando o radar meteorológico para driblar algumas nuvens de tempestade, garantindo o voo confortável e divertido.
Azul Conecta
Poucas coisas podem ser tão caóticas quanto estrear uma linha aérea em ano de pandemia. A Azul, porém, aguentou o tranco e soube aproveitar eventuais oportunidades.
Uma delas foi usar suas vagas em aeroportos disputados, como Congonhas, para operar voos a cidades do litoral paulista. A empresa justifica que, com a queda das viagens de negócios, a demanda no local caiu bastante, abrindo espaço para rotas alternativas.
Ainda é cedo para cravar os destinos que ficarão após o verão, já que isso depende de como a pandemia seguirá. Entretanto, a ideia passa por manter trechos fixos e outros disponíveis pontualmente em feriados, por exemplo.
Com sua subsidiária, a Azul também busca resolver uma situação comum para moradores do interior do Brasil, que muitas vezes precisam pegar horas de estrada até o aeroporto mais próximo.
Se depender da taxa de ocupação vista e da satisfação dos passageiros com a curiosa experiência, o 208 Grand Caravan está prestes a construir uma relação saudável nos nossos céus, cumprindo bem sua missão.
Ficha técnica do Cessna 208B Grand Caravan:
Motor: Pratt & Whitney PT6A-114A turboélice a querosene de aviação, 3-pás com embandeiramento completo
Potência (no eixo da hélice): 675 cv
Consumo (na rota BH-Búzios): 1,8 km/l
Capacidade: 2 tripulantes e 9 passageiros
Dimensões: comprimento, 11,46 m; envergadura, 15,87 m; altura, 4,53m (externa)/1,37 m (cabine); peso vazio, 2.145 kg; peso máximo de decolagem, 3.629 kg;
Desempenho: velocidade máxima de cruzeiro, 344 km/h; autonomia, 1.982 km; teto operacional, 7.620 m
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